HOMEM DE “CINQUENTA”


Wagner Fontenelle Pessôa
Ser bancário já foi, no Brasil e antes que governos sucessivos achatassem os ganhos da prestigiosa carreira, uma coisa que dava um belo "status", sobretudo se o caso era o de ser funcionário de um banco oficial, como o Banco da Amazônia, o Banco do Nordeste ou o Banco do Brasil, por exemplo. O que era, aliás, a aspiração e o sonho de muitos jovens da classe média brasileira daqueles bons tempos. 
            No entanto, apesar do salário, mais que razoável para as circunstâncias de então, ninguém estava ganhando, também, um prêmio de loteria por mês. E além de tudo, alguns daqueles funcionários, não raramente, acabavam se entusiasmando demais e “metendo os pés pelas mãos" no seu orçamento mensal. Assim, não era impossível conhecer, de vez em quando, algum bancário endividado, vítima preferencial dos agiotas.
            Havia, assim, nessa época, um funcionário do Banco do Nordeste do Brasil que devia ser o mais endividado, irresponsável e inconsequente servidor que o BNB já possuiu! Era carinhosamente chamado de “Neguinho”, pelos seus colegas bancários, não porque fosse um negro de verdade, mas por ser um desses morenos bem queimados, daquele maravilhoso sol do Ceará. E era desses que só tinha dois credores: Deus e todo mundo! Devia a não sei quantos agiotas e já havia tomado todos os empréstimos que o seu combalido cadastro possibilitava. Era de um descontrole financeiro completo!
            Apesar disto ou, talvez, por isto mesmo, parecia não se preocupar com nada! Se numa sexta-feira, após o expediente, a turma saia para uma “esticada”, enquanto todo mundo tomava cerveja ou conhaque, o folgado só pedia uísque! Até porque, no final, sempre sem dinheiro, ele propunha pagar a sua parte com um cheque — sem fundos, naturalmente — e a turma, sabedora disto, não raras vezes, acabava dividindo a despesa por uma cota a menos. Fazia o tipo rematado do “teso e liso” de quem todo mundo gosta.
            Deu-se que o BNB mandou um grupo de funcionários a São Paulo para um curso não sei do quê e, dentre eles, lá se foi o “Neguinho”, que, mesmo antes de viajar, já havia gastado uma parte das diárias. Chegou na capital paulista com muito pouca grana e, o pior, acompanhado de colegas que tinham um padrão financeiro bem superior ao dele. Toda noite havia uma “esticada” e o “Neguinho” junto, firme com a turma. Na volta, ele contando as maravilhas da programação, quando alguém que conhecia bem o seu estilo, perguntou:
            — Mas... E como ficava na hora de pagar a conta?
            E o “Neguinho”, sem qualquer constrangimento, explicava:
            — Todo mundo metia a mão no bolso e eu também! Só que eu fazia isso mais devagar. Aí, quando o meu chegava, a conta já estava paga...
            Mas, na noite de despedida, a coisa se complicou. Naquela época, o ponto de maior luxo da boemia em São Paulo ficava na Rua Major Sertório, onde mulheres inimagináveis cobravam "cachês" astronômicos: a boate “La Licorne”, que só era frequentada pelos figurões de então. E foi justamente lá que a turma fez a última comemoração do curso.
            A noite foi maravilhosa, só na base de bebidas importadas e petiscos finos. Com o passar do tempo, aquelas mulheres, inacreditáveis de tão lindas, foram se chegando para a mesa e cada qual tomou a companhia de uma delas... Inclusive ele, é claro! O amanhecer do dia seguinte foi soberbo, com um lauto café, posto pela anfitriã para o convidado.
            Sem ter a mínima idéia do quanto custaria um programa daqueles — estimam os mais versados que entre quinhentos e seiscentos cruzeiros, na época — o “Neguinho” nem perguntou nada. Tirou cinquenta cruzeiros do bolso, pôs em cima da mesa e foi se levantando, quando a beldade perdeu a classe e a calma, tentando segurá-lo pela camisa:
            — O que, seu vagabundo?! Você está me achando com cara de mulher de cinquenta cruzeiros?!
            E o “Neguinho”, já abrindo a porta, enquanto a mulher tentava pegar a faca de pão:
            — De jeito nenhum, minha filha! Você é mulher de “mil cruzeiros”! Eu é que sou um homem de “cinquenta”!
            Foi acudido, já no corredor, por um companheiro de curso que, saindo de um apartamento ao lado, justamente naquela hora, viu a cena e compreendendo tudo, assumiu a despesa da noite, dizendo ao “Neguinho” que depois fariam um acerto. Mas, pelo que sei da figura, duvido muito que, algum dia, tenha conseguido receber o empréstimo de volta...

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