Os córregos de São Francisco de Itabapoana e de Marataízes

Arthur Soffiati


Que o leitor faça um exercício de imaginação. Imagine que regressamos 60 milhões de anos no tempo, mas continuamos no norte fluminense e no sul capixaba. A paisagem era muito diferente, mas não totalmente irreconhecível. Você veria a serra e o mar, ambos ambientes que lhe são familiares, mas, entre eles, existia um tipo de terreno que se estendia do Rio Macaé ao Rio Itapemirim. Ele ainda existe na região com o nome de tabuleiro. Trata-se de um terreno baixo e ondulado, com colinas e depressões, no passado coberto de matas e de acumulações de água.


Figura 1 - Ecorregião de São Tomé delimitada por quadrilátero azul. Os terrenos posteriores a 60 milhões de anos estão demarcados por linha vermelha entre Macaé e Itapemirim. Legenda: 1 e 2- Zona Serrana; 3, 4 e 5- Unidades de Tabuleiro; 6- Planície Goitacá; 7 e 8- Planícies aluviais dos Rios Itabapoana e Macaé; 9- Restinga de Marobá; 10- Restinga de Paraíba do Sul; 11- Restinga de Jurubatiba  Mapa RadamBrasil com trabalho do autor.

            Ele entrava mais longe no mar e era cortado pelos rios que conhecemos: Itapemirim, Itabapoana, Guaxindiba, Paraíba do Sul e Macaé. O Itapemirim erodiu uma parte do
tabuleiro e encontrou uma passagem entre ele e as pedras, na margem esquerda. O Itabapoana devia chegar ao mar por um pequeno delta de três braços. Antes, ele escavou no tabuleiro uma grande bacia, denominada hoje de Lagoa Feia do Itabapoana. Não se sabe muito
bem onde era a desembocadura do Guaxindiba nessa época remota, mas não devia ser muito longe da atual. A do Rio Paraíba do Sul mudou muito. Ele devia cruzar o tabuleiro e desembocar onde hoje fica o Farol de São Tomé. Talvez recebesse os Rios Imbé, Urubu, Preto e Macabu como afluentes pela margem direita. A Lagoa de Cima já devia existir. Também a foz do Macaé oscilou, mas continuou mais ou menos no mesmo ponto.

            Em cerca de 123 mil anos passados, houve uma elevação do nível do mar que criou uma restinga (terreno arenoso), colado no tabuleiro, entre o Rio Macaé e a atual Barra do Furado, que ainda não existia. A maior parte desta restinga está hoje protegida pelo Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba. Por volta de 10 mil anos passados, as geleiras da Terra começaram a derreter e o nível do mar a subir. O mar avançou sobre o tabuleiro até onde pôde. Entre o Rio Itapemirim e o Córrego de Manguinhos, o mar comeu boas parte do tabuleiro, que deixou seus vestígios no mar, como blocos ferruginosos e a pequena Ilha dos Andorinhas. Nesse trecho da costa, é muito comum encontrarmos paredões no tabuleiro construídos pelo mar a que damos o nome de falésia. Em São Francisco de Itabapoana e Marataízes as falésias são muito comuns.


Figura 2 - Falésia na Praia de Guriri (SFI). Foto de Wellington Rangel

            No Vale do Paraíba do Sul, que devia ser mais baixo que os vales dos outros rios, o mar subiu e avançou até a serra, destruindo um grande trecho de tabuleiro. O Paraíba do Sul teve sua foz no mar recuada para a zona serrana. Quando o mar baixou, ele mesmo - o mar - e o Paraíba do Sul botaram ordem nessa bagunça geológica. Trazendo terra da região serrana, o Paraíba do Sul foi criando uma planície, completada pela areia transportada pelo mar e retida pelo jato d'água do Paraíba do Sul no mar, que era muito mais forte que o atual.

            Assim, o tabuleiro foi separado em dois blocos por uma planície fluviomarinha, a maior do Estado do Rio de Janeiro. O primeiro bloco ficou entre o Rio Macaé e o Município de Quissamã. O segundo se estende da margem esquerda do Rio Paraíba do Sul até a margem direita do Rio Itapemirim. Esse segundo bloco é cortado por dois rios grandes e por vários pequenos. Entre os Rios Itapemirim e Itabapoana, ainda encontramos fragmentos dos Córregos da Encantada, da Funda, da Anta, do Siri, da Lagoinha, das Pitas, dos Cações, do Mangue, de Caculucage, dos Quartéis, da Tiririca, da Boa Vista e de Marobá.



Figura 3 - Córregos alagoados de Marataízes: 1- Funda, 2- Dantas, 3- Siri, 4- Lagoinha, 5- Das Pitas, 6- do Mangue; 7- de Caculucage, 8- da Tiririca, 9- Boa Vista, 10- Marobá. Imagem Google Earth

            Entre o Rios Itabapoana e Guaxindiba, encontram-se os da Salgada, Doce, Guriri, Tatagiba Açu, Tatagiba Mirim, de Buena, da Barrinha e de Manguinhos. Em Marataízes, há três córregos que a cidade adulterou muito. Todos desembocavam no mar, com foz periódica ou permanentemente aberta. É preciso estudá-los mais.


Figura 4 - Córregos alagoados de São Francisco de Itabapoana: 1- Salgada, 2- Doce, 3- Guriri, 4- Tatagiba-Açu, 5- Tatagiba-Mirim, 6- Buena; 7- Barrinha, 8- Manguinhos. Imagem Google Earth



            A região entre os Rios Itapemirim e Guaxindiba, ou seja, dentro do que denomino de Ecorregião de São Tomé, nos meus estudos, está enfrentando a pior seca desde que se começou a fazer registros de temperatura e umidade, há 80 anos. Aliás, toda a Região Sudeste do Brasil está vivendo situação semelhante, muito embora chuvas abundantes tenham caído pontualmente em locais dela. Envolvido em questões ambientais desde 1977, tenho advertido que os fenômenos climáticos extremos (muita chuva e muita seca, muito calor e muito frio) não são naturais, como ainda se continua pensando, mas decorrem da ação humana sobre o Planeta. No meu entender esta longa estiagem resulta de emissões e acúmulo de gases na atmosfera, do desmatamento progressivo da Amazônia, que está perdendo sua capacidade de produzir nuvens e enviá-las para o Centro-Oeste, o Sudeste e o Sul, nos chamados rios de nuvens ou rios voadores, e do desmatamento das bacias hidrográficas da Região Sudeste.

            No caso da área que estamos estudando, os córregos foram muito vilipendiados ao longo de dois séculos. Dirá alguém que um córrego como o de Barrinha ou dos Quarteis não pode se equipar ao Paraíba do Sul em importância. Certo, mas era melhor conservá-los do que destruí-los. Embora pequenos, estes córregos contribuíam para a umidade da área.



Figura 5 - Foz barrada do Córrego de Barrinha com exemplar jovem de mangue branco. Foto do autor. 


            Mas, o que aconteceu? Em 1815, um naturalista alemão de nome Maximiliano de Wied-Neuwied, cruzou o que seriam futuramente os Municípios de São Francisco de Itabapoana, Presidente Kennedy e Marataízes, do Rio de Janeiro em direção a Salvador. Na altura de Manguinhos, informa ele no seu livro "Viagem ao Brasil", que o caminho (não havia trem nem automóvel naquela época) se afastava da praia e se embrenhava numa floresta intrincada e escura. Ele falava do Sertão das Cacimbas. Caminhando por ela, ele e sua expedição saíram na Fazenda de Muribeca, na margem do Rio Itabapoana, que pertencera aos Jesuítas até a expulsão deles do Império Colonial Português pelo Marquês de Pombal. Ao cruzar o rio, ele continuou andando dentro de uma mata até a Vila de Itapemirim. Havia muita umidade nos terreno. Esses córregos corriam em meio à mata. Em 1818, outro naturalista europeu, Auguste de Saint-Hilaire, fez o mesmo percurso, encontrando a mesma floresta e a mesma umidade.

            Já em meados do século XIX, o diplomata e naturalista amador Jacob Tchudi, faz o mesmo caminho, só que vindo do Espírito Santo. Ele já encontra queimadas no Sertão das Cacimbas. Proprietários rurais e donos de engenho já cortavam a floresta para obtenção de lenha e madeiras nobres ou simplesmente a queimavam para a plantação e para a criação de gado sem nenhuma preocupação em proteger as fontes da vida.


Figura 6 - Queimada no Sertão das Cacimbas. Desenho de Jacob Tschudi

            A umidade foi drasticamente reduzida, sobrando tão somente uma amostra mais ou menos representativa da grande floresta denominada sintomaticamente de Mata do Carvão. Hoje, está protegida pela Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba. Quem puder se acercar dela, notará que a umidade aumenta.

            Mas não foi só. Com nascentes e margens desprovidas de vegetação protetora, a vazão dos córregos diminuiu e o mar começou a vedar sua foz. O encontro de água doce com água salgada alterou o que chamamos de estuário, zona de água salobra e propícia ao desenvolvimento de manguezais. Até hoje, na foz ou no que foi a foz de vários córregos, encontrei manguezais ou vestígios da sua existência outrora.

            Com o decorrer do tempo, a secura aumentou e os proprietários rurais, no afã de obter água, construíram barragens nesses córregos, privando os vizinhos abaixo da água necessária às plantas e aos bichos. Alguns foram mais longe, aprofundando o leito dos córregos para conseguir mais água. Até para fazer lazer, usaram esta prática.

            Depois, vieram as estradas municipais e estaduais, que secionaram esses córregos e seus afluentes em vários pontos. São Francisco de Itabapoana é cortado por duas estradas estaduais asfaltadas, a RJ-224 por dentro e a RJ-196 pela costa. Presidente Kennedy e Marataízes são cruzados pela ES-O60. Nenhuma delas respeitou esses córregos ao cruzá-los. É mais fácil encontrar passagens bem dimensionadas para o trânsito de gado sob as estradas do que de água. Nunca fui contra as estradas, mas sim contra os métodos de construção, barrando cursos d'água e destruindo florestas.

            A mineração também contribuiu muito para adulterar estes córregos. Ela indeniza e recupera o solo em terras particulares. Em terras públicas, porém, ela deixa os estragos, como aconteceu nos Córregos-Lagoas Salgada, Doce, Guriri e Tatagiba-Açu. Neste último, a foz foi fechada pela lavra, o córrego encheu e a população teve de abrir uma vala para extravasar para o mar a água acumulada.

            Muito fertilizante químico e agrotóxico foi carreado pelas chuvas para esses córregos, eutrofizando-os e envenenando-os. A fauna aquática em grande parte morreu. Finalmente, as cidades avançaram para cima deles. Muitos foram aterrados ou perderam a foz. A cidade de São Francisco de Itabapoana cresceu sobre as Lagoas  Salgada e de Macabu, fragmentadas em muitas pequenas lagoas. No século XIX, o grande Canal de Cacimbas ligava a Lagoa do Macabu ao Rio Paraíba do Sul. Por sua vez, Marataízes faz o mesmo com alguns desses córregos.
            Não podemos decidir sobre o aquecimento global e sobre o desmatamento da Amazônia. Nem mesmo podemos decidir sobre a Bacia do Paraíba do Sul. Mas podemos muito bem cuidar desses córregos. Cada município devia desobstruí-los da nascente, todas elas em terreno de tabuleiro, até a foz, instalando preventivamente uma comporta no final para não se perder toda a água doce, e reflorestar as nascentes e as margens do início ao fim. Dinheiro para o supérfluo, os governos conseguem. Para o essencial, não.

Um comentário

José Gomes disse...

Infelizmente a ganancia cega e aos demais apenas calam-se diante de tamanha agressão à natureza. destes córregos, pequenos rios ou do que deles ainda restam, hoje já estão contaminados, por detergentes, coliformes fecais, agrotóxicos entre outros. Sei que as cidades avançam e que a população necessita de eliminar os seus dejetos, mas cabe as autoridades encaminhar as soluções, pois eles captam recursos para isso, mas onde vão parar esses recursos? A natureza faz e desfaz ao longo dos tempos e ela é quem deveria moldar os seres e não do contrario, quando são os que se dizem humanos quem estão a moldar a natureza que os criou. Sei que é triste e trágico, mas se não mais podemos mudar pra nós, pensemos em nossos filhos e netos, eles não merecem pagar por nossos atos, ou pensam que sim?