APENAS ENJOOU DA NOSSA CARA, GENTE!
Wagner
Fontenelle Pessôa
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Toda família tem lá
as suas histórias, não é assim? São episódios engraçados, algumas gafes
monumentais, cometidas por pai e mãe, tios, avós, irmãos, primos e amigos. Ou,
na pior das hipóteses, contra algum deles. Situações inusitadas,
constrangedoras ou, simplesmente, engraçadas mesmo, cujas frases ou reações
acabam se transformando numa espécie de “bordão familiar”, para um significado
específico. Toda família tem, por assim dizer, o seu folclore particular. E a
minha não foge a esta regra.
Pois uma dessas histórias, em nosso
caso, nos foi trazida por uma doméstica que trabalhou lá em nossa casa, ao
tempo em que estávamos, os meus irmãos e eu, aí pela casa dos dez aos quatorze ou
quinze anos de idade.
A criatura se chamava Erli e, por
sua vez, não passava dos dezessete ou dezoito anos. Uma completa maluquinha, que
cantava o dia inteiro, como se estivesse no banheiro de sua própria casa
tomando uma chuveirada e não nos afazeres domésticos da casa da patroa. E ria —
como ria aquela doidinha — a propósito de qualquer coisa. Contando um acidente,
a morte de um vizinho, qualquer fato era motivo para que ela terminasse a
narrativa às gargalhadas, agarrada a uma vassoura, encostada na pia ou na porta
de um cômodo que estivesse a faxinar.
Minha mãe até que levava aquilo com bastante
espírito esportivo, num tempo em que as domésticas eram menos empregadas e mais
agregadas da família. Com salário, mas sem carteira assinada. Uma época, que já
ficou longe, em que a legislação era outra, mas a consideração das famílias
pelas pessoas que trabalhavam em sua casa, também era maior.
De toda forma, quando Erli começava
com aquelas maluquices — sobretudo, aquela risadaria incontida, a propósito,
não raras vezes, de coisas nada engraçadas — eu lembro de ouvir a minha mãe
dizer, com um jeito mais de mãe e menos de patroa:
— Toma juízo, menina!
Embora isto só servisse para que a
garota risse mais ainda. Até que um dia, depois de não sei quanto tempo como
doméstica lá em casa, Erli não apareceu para trabalhar. Mamãe não achou que
fosse nada de excepcional, mas ficou realmente surpresa quando, depois do
segundo dia consecutivo de falta, já na parte da tarde, apareceu por lá a mãe
da criatura, apenas para dizer que a filha não iria mais trabalhar para nós.
Nossa mãe ficou visivelmente
preocupada, sobretudo, porque deixar o serviço daquela maneira, sem qualquer
motivo aparente, parecia um despropósito, depois de ela haver trabalhado em
nossa casa por um tempo que, ao que me lembre, não fora tão pequeno. E como,
com os dois filhos chegando à adolescência, a “marcação” que nos fazia era
cerrada, acabou dizendo à mãe da garota:
— Está certo. Vou buscar o dinheiro
que ela ainda tem a receber, pelos dias deste mês, porque ninguém deve
trabalhar numa casa onde não se sente à vontade. Mas, por favor, me diga,
porque isto eu preciso saber: qual é o motivo que ela tem para não querer
continuar aqui? Houve alguma coisa com ela? Algum dos meninos (referia-se aos
quatro, mas, obviamente o seu “foco” estava nos dois filhos homens, que mal
haviam entrado na adolescência) disse ou fez algo de que ela não gostou?
A mãe de Erli não fez rodeio para
responder:
— Não... Ela só enjoou da cara de “ocês”!
Ao que a dona da casa, entre a irritação
contida e o coração aliviado, arrematou:
— Ah, bom! Se ela só enjoou da nossa
cara, então está tudo bem... E foi buscar o resto do pagamento de Erli.
Mamãe pode até ter tirado o peso
daquela dúvida do seu coração. Mas eu, durante muitos anos, achei que o meu
irmão, que era muito traquina, não estivesse inteiramente isento de
responsabilidade naquele episódio.
Mesmo que, fraternalmente e em favor
do mano, eu sempre tenha dado crédito à versão de que aquela maluquete, apenas,
“enjoou da nossa cara”!
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