LIMPEZA DE CARÁTER
Wagner Fontenelle
Pessôa
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Ao
tempo em que a minha família morou na cidade de Cachoeiro de Itapemirim, no
glorioso Estado do Espírito Santo, onde tive a boa fortuna de nascer, o meu pai
foi proprietário, por alguns anos, de uma pequena empresa de construção civil e
terraplenagem. E foi em razão disto que, além dos operadores de máquinas,
motoristas, mecânicos e auxiliares, ele teve, a seu serviço, um ajudante de
tratorista chamado Zé Silva.
Era um pretinho desses de pequena
estatura, esbelto e com uns olhos escuros, que nem jabuticaba, apressado no
cumprimento das ordens, ainda que meio atrapalhado, de vez em quando, tal a sua
vontade de dar cabo das tarefas que lhe eram atribuídas.
Embora, naquela época, meus irmãos e
eu fôssemos apenas crianças, vendo à distância, depois de tanto tempo, posso
avaliar que ele não teria mais do que uns vinte, vinte e poucos anos. Mas o
fato é que o Zé Silva, pelas suas tiradas, perguntas, respostas e reações, acabou
se transformando num tipo meio folclórico, nas lembranças de todos nós.
O meu pai sempre foi muito cauteloso,
com quem trabalhava para ele, no sentido de não deixar que o empregado se
descontrolasse com as próprias finanças. Talvez, porque soubesse que um
trabalhador atormentado por dívidas e compromissos, não consegue se concentrar
no trabalho e nem ser totalmente produtivo. Assim, mantinha muito controle com
"vales" e "adiantamentos", para que o empregando não
chegasse ao final do mês sem algum saldo de salário que, lhe garantisse o
pagamento das contas no armazém, açougue ou padaria.
Pois deu-se que num sábado, dia
normal dos empregados receberem, apresentou-se muito arrumado, para o pagamento
da quinzena o Zé Silva, que, sem nenhuma pressa aparente, foi deixando que os
outros fossem pagos primeiro. Ficou para o final da fila e, ao entrar no
escritório, depois de receber e conferir o seu envelope do pagamento,
perguntou, um pouco hesitante, ao meu pai:
— "Seo" João, será que o senhor
podia me adiantar um dinheiro do próximo pagamento?
Preocupado que ele pudesse estar
metendo os pés pelas mãos, o patrão quis saber:
— E para o que você precisa de mais
dinheiro, Zé Silva? Não está acabando de receber o seu pagamento?
O pretinho baixou aqueles olhos de
jabuticaba ao chão e explicou:
— É que eu namoro uma moça aí e como
"aconteceram umas coisas", eu estou precisando "limpá o meu caráte".
Como para um bom entendedor meia
palavra basta, o meu pai só fez perguntar:
— E de quanto você precisa para "limpar
o seu caráter", Zé?
— De uns cem cruzeiros, seu João.
No dinheiro de hoje, eu não saberia
mais fazer a conversão, mas era bem pouco, pelo que me lembro, quando ouvi esta
história pela primeira vez. Algo como uns trezentos reais de hoje. E, é claro,
o pedido do Zé Silva foi atendido...
Aquilo, sim, é que era um caráter
barato de se limpar!
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