ALÍ GOSTAVA DE UMA ENCRENCA!





Wagner Fontenelle Pessôa                               

O gordinho era dentista numa cidade de interior, bem longe da capital e meio fora das rotas de maior movimento. Por isto, além das atividades que desempenhava no consultório, o que mais consumia o seu tempo era abelhudar a vida alheia e tomar posição, de um lado ou de outro, na política miúda e repleta de intrigas daquele município, que dividia os eleitores entre os dois partidos locais: o "azul" e o "encarnado", como diziam por lá.

            Mas o azul e o vermelho, das respectivas bandeiras, não eram apenas cores que identificavam suas preferências
políticas; eram quase uma religião. O que autorizava os seus adeptos a se provocarem e a se ofenderem, mutuamente, a propósito de tudo ou de nada. Fosse no período das eleições, fosse fora delas. E, neste particular aspecto, aquele dentista futriqueiro se esbaldava: tinha tempo, disposição e uma inteligência brilhante, para levar de vencida quase todas as intrigas em que se metia.

            Mas houve um dia em que na cadeira do seu consultório, um menino com os dentes em estado bem precário — o que não é incomum acontecer com essa gente do meio rural, ainda mais num lugar distante daqueles — assustou-se quando viu a seringa da anestesia nas mãos do profissional, às vésperas de extrair-lhe um dente molar com o nervo exposto. E deu-lhe uma vigorosa mordida no polegar, que quase lhe arranca um pedaço do dedo.

            Depois de pular num pé só, por algum tempo, apertando o polegar com a outra mão, para aliviar a dor, recuperou o controle e retomou o procedimento no garoto neurastênico, segurando aquele motor e dizendo, como se estivesse realmente calmo:

            — Espere aí, meu filho, que, com isso aqui, você não vai sentir nada...

            Em seguida, atochou a broca no nervo exposto do moleque, que deu um berro, pulou da cadeira e saiu chorando de porta afora, enquanto o profissional dizia para a simplória mãe, que não entendera nada do que se passara:

            — É melhor a senhora levar ele para o doutor Fulano (que era o outro dentista com consultório na cidade), porque comigo ele não está conseguindo relaxar.

            Ato contínuo, prestou o vestibular para o curso de Direito numa cidade que não ficava tão longe e, para todo o sempre, trocou a odontologia pela advocacia. Porque, sendo advogado, tinha poucas chances de levar uma dentada de um cliente e, sobretudo, porque poderia dedicar-se, profissionalmente, ao bate-boca, que ele tanto apreciava.

            Mas, quando o seu curso jurídico já ia chegando ao fim, um professor de prática profissional programou uma visita da sua turma a um manicômio judiciário. E lá se foram os acadêmicos, enfatiotados de terno e gravata, como tanto agrada aos estudantes de Direito. Precedidos pelo psiquiatra que os recepcionou e pelo professor da disciplina, iam caminhando por uma ala, quando ele, o bacharelando, que ficara mais para a ré do grupo, foi chamado por um interno através da grade de um quarto:

            — Psiu! Ei!!! O senhor pode chegar aqui um pouco? Eu estou precisando da ajuda de um advogado, porque não sou louco, não. Fui enfiado neste hospício por uma questão de herança, uma briga feia na nossa família!

            Aquilo despertou o seu interesse, de imediato! Puxou uma caderneta do bolso, aproximou-se do cubículo onde estava o tipo e, pronto para fazer algumas anotações, perguntou o nome do interno. Foi quando o louco, passando as mãos através das grades, agarrou firme as orelhas do gordinho e, sacudindo sua cabeça com força, disse o óbvio:

            — Isso já gosta de uma encrenca!

            Na verdade, o sujeito era um completo maluco, mas percebeu com muita lucidez de quem se tratava aquele futuro advogado.    

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