Crônica da semana/ASSUNTO DE "DENHEIRO"
Wagner
Fontenelle Pessôa
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Compartilhei
com o Fernando, meu irmão, uma infância de simplicidade. Mas muito, muito divertida,
criativa e saudável. Algo que — às vezes, penso com certa dose de melancolia — essas
jovens gerações não estão tendo mais.
Não costumávamos brincar na rua,
como era comum os meninos fazerem, naqueles tempos de menor insegurança. Porque
a nossa mãe sempre preferiu que os amigos viessem brincar em nossa casa, do que
saber da gente andando pela casa dos outros. A nossa casa, aliás, era grande e
construída em diversos planos, com espaço sobrando para todas as aventuras e traquinagens
que pudéssemos imaginar, naquela época de crianças mais ateiras e menos
maldosas.
O meu pai, seguindo uma tradição de
sua família, sempre gostou de casas grandes. Às vezes, com tantas dependências,
que algumas delas chegavam a ficar sem uso, na maior parte do tempo. Pois, para
nós, esses cômodos vazios se transformavam em espaços apropriados para o
cenário das nossas brincadeiras. De tal sorte, que a impossibilidade de nos
divertirmos pela rua ou na casa dos outros, acabou estimulando a nossa
criatividade, nas coisas que inventávamos para consumir aquelas horas
desocupadas. Que, numas vezes davam certo; e noutras, não.
Em duas ocasiões, por exemplo, dei
uma prestimosa colaboração para que o meu irmão quebrasse, de uma só vez, os
dois braços. Numa, quando me esborrachei com ele — que ia na garupa de uma
bicicleta pilotada por mim — numa estradinha recoberta de saibro, de ladeira
abaixo e bem pertinho de onde morávamos. Noutra, quando ele se pendurou na
ponta de um telhado, que cobria um grande terraço, na parte superior da nossa
casa.
Estávamos caminhando sobre uma
mureta que cercava toda a laje, quando o mano saltou e se agarrou nas ponteiras
do madeirame, gritando: "Eu sou Tarzan!"... Vindo logo em seguida e
totalmente irresponsável, também saltei e me agarrei nas pernas dele, dizendo,
para completar o enredo da brincadeira: "E eu sou Boy!".
O
resultado foi que o "Tarzan" não aguentou o peso e despencamos, os
dois. Eu, mais perto do piso, caí e cheguei ao chão em pé. Mas ele, ao
soltar-se do cipó imaginário, recebeu o impacto sobre os braços, o que lhe custou
um novo gesso duplo, por algum tempo. E só não esmagamos a "Chita",
porque não havia ninguém que estivesse desempenhando esse papel na nossa
brincadeira!
No entanto, havia uma área da casa
que não nos era facultada: o escritório do papai, que, talvez por isto mesmo,
era, pelo menos para mim, o espaço mais atraente. Tinha uma prancheta com régua
paralela, tinha máquina de escrever e de calcular (daquelas manuais, é claro!),
tinha uma rede onde, às vezes, ele se deitava para descansar um pouco, além daquele
monte de lápis, canetas, borrachas e papéis... Enfim, um tesouro para qualquer
menino.
Pois, era só o meu pai se esquecer
de trancar aquela porta, para eu me meter no escritório dele, que se
transformava na minha diversão pela tarde inteira. E uma das coisas que eu não
dispensava, estando por lá, era brincar na sua máquina datilográfica, o
"editor de textos" daqueles tempos. Só que eu não tinha o quê e nem
para quem escrever, além de ainda nem dominar a escrita manual. Que dirá a
datilografia!
Sendo
por isto que, certa vez, usufruindo daquele parque de diversões particular,
depois de enfiar uma folha de papel na máquina, eu teclei — catando letra por
letra e misturando as maiúsculas com as minúsculas — um bilhete dirigido ao meu
irmão, que escrevi, assim mesmo, sem a pontuação devida:
— Fernando precisamos conversar
urgente É assunto de "denheiro".
E tudo teria ficado por isto mesmo, não
fosse um tio nosso, muito crítico e engraçado, haver encontrado a minha
mensagem mal escrita e ter lido aquilo, às gargalhadas, para o resto da família.
Da exata forma como eu a escrevera. O que fez o assunto transformar-se, lá em
casa, em motivo de mofa e diversão, por muito tempo.
Com toda razão, aliás! Afinal de
contas, o que eu queria era só um motivo, para justificar o uso da máquina de
escrever do meu pai. Porque, naquela ocasião, eu não tinha nenhum assunto
urgente para tratar com o meu irmão que explicasse a convocação de uma reunião
extraordinária entre nós. E, muito menos, qualquer "denheiro", sobre
o qual eu pudesse conversar com ele.
Ironicamente, o destino nos fez viver
em lugares distantes, durante a maior parte das nossas vidas. Embora, pela
afinidade e pelo benquerer que nos une, continuemos a ter um repertório
interminável de assuntos pendentes, sobre os quais poderíamos e gostaríamos de
conversar. O que, com desconfortável frequência, faz ressurgir em mim a vontade
de lhe mandar um outro bilhete, dizendo que precisamos nos encontrar com
urgência.
Mesmo que — e, talvez, seja este o meu carma — eu continue
sem ter nenhum "denheiro", que me sirva de desculpa para justificar a
convocação...
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