Crônica da semana /DESNECESSÁRIO IMPORTUNAR O REVERENDO


    Wagner Fontenelle Pessôa                           
Em tempos idos e durante um período de prolongada estiagem, ia o velho padre, numa difícil viagem pelo agreste nordestino, tentando cumprir a árdua tarefa que assumira, desde uns anos antes, de periodicamente visitar uma série de povoados e lugarejos, que não contavam com nenhum pároco, residente ou regular.
                Fazia esse périplo, a cada dois ou três meses, para prestar, àquelas populações sertanejas, a assistência espiritual que tinha ao seu alcance, embora contasse com pouco ou nenhum recurso para isto. Em cada um dos povoados celebrava uma missa, na capela que houvesse no lugar. E, não havendo nenhuma, realizava a celebração em qualquer espaço aberto, que possibilitasse a prática do ato litúrgico.
                Sua chegada a esses lugarejos era sempre festejada, porque, além da missa, propriamente dita, ele ainda tomava a confissão dos fiéis, batizava as crianças nascidas desde a sua última visita e, sendo possível, realizava um ou mais casamentos, para evitar ou pôr fim a uma prática que, ao seus olhos, era considerada intolerável e pecaminosa: a do concubinato.
                Naquele ano, porém, a seca estava sendo inclemente, com o sol ardendo no céu, os caminhos poeirentos, o solo esturricado e sem produzir praticamente nenhum alimento, com as poucas reservas d'água chegando ao fim. De tal forma que a viagem vinha sendo particularmente lenta e penosa. E isto punha a perder as previsões feitas para a duração de cada etapa, cumprida a pé, como se fosse uma penitência pessoal, para igualar suas agruras às daqueles que buscava assistir, com o seu ministério.
                Foi por isto que num dia, já quase derrotado pela escuridão da noite, o velho padre, sem conseguir vencer toda a distância que programara para aquele trecho, vislumbrou uma casinha, posta em destaque naquele cenário desolado, pela pouca claridade de uma lamparina. Experimentando um alento de esperança, dirigiu-se resoluto para lá. E, ao chegar, foi atendido por uma mulher muito simples, a quem se apresentou e, explicando a situação, rogou um pouso para aquele pernoite.
                A pobre dona da casa respondeu que tudo quanto lhe poderia oferecer era uma rede, armada a um canto da residência, de poucos cômodos. O cura, muito agradecendo — mas sem se alimentar, desde um simples café, que tomara pela manhã — armou-se de coragem para avançar, um pouco mais, no uso da hospitalidade de quem o recebia. Perguntou se ela, por acaso, não teria alguma coisa que ele pudesse comer.
                — Qualquer coisa, minha filha, simplificou o sacerdote. É que eu não comi nada durante o dia inteiro!
                — Desculpe, padre, mas aqui também já tem três dias que não temos comida. E faz dois que o meu marido saiu por aí, para tentar arranjar um "adjutório" para a nossa "precisão"...
                Desesperançado da mínima possibilidade de enganar a fome, o velho padre agradeceu e conformou-se com os desígnios do Criador, indo deitar-se na rede, que a hospitalidade sertaneja pusera à sua disposição. Custou a dormir, com o estômago reclamando algum alívio. Mas preferiu distrair a sua atenção daquilo, fazendo suas orações em pensamento. Até que, vencido pela exaustão, acabou adormecendo.
                E já ia mergulhando fundo naquele primeiro sono, quando voltou à realidade daquela casa pobre e sem comida, acordado pelo chamado da sertaneja humilde, que sacudia levemente a sua rede:
                — Padre... Padre... Padre... O senhor gosta de pipoca?
                Fazia tempo que o velho padre não mostrava tanta agilidade! De um impulso só já estava sentado na rede, com as pernas para o lado de fora e pronto para se levantar:
                — Claro, minha filha! Eu adoro pipoca! Você pode fazer um pouco para mim?
                Ao que a mulher, lhe disse, com um jeito desconsolado:
                — Puxa vida, "seu" padre! Eu tava deitada na minha rede, quando me deu essa ideia: se eu tivesse um pouco de milho aqui, até que podia fazer uma "pipoquinha" para o vigário... Mas é pena que eu não tenho!
                Diante daquela inacreditável situação, o que restou ao religioso foi pedir paciência a Deus e voltar a se acomodar na rede. Mas aí, sim, levou bem mais de hora para conseguir conciliar o sono outra vez, imaginando o gosto daquela pipoca, que lhe pareceu, por um breve instante, a mais fina das iguarias.
                Aquela infeliz tinha o coração de um anjo, mas a mentalidade de um jegue! Afinal de contas, só para saber se o hóspede gostava ou não de pipoca, seria totalmente desnecessário importunar o reverendo.

2 comentários

Vera Maria Viana Borges disse...

Admirável! MUITO BOM!!! Parabéns, professor!!! Saúde e muita paz!

Wagner Fontenelle Pessôa disse...

Muito grato, minha caríssima professora. É uma honra tê-la como leitora de um texto meu... Abraço e tudo de bom!