Crônica da semana/ GENTE FOFOQUEIRA
Wagner Fontenelle Pessôa
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O
meu tio Geminiano, que ocupava a quarta posição na irmandade do meu pai, foi
uma das inteligências mais agudas que a nossa família produziu. A par de uma
perspicácia admirável, era um homem de cultura acima da média, o que o levou a
uma situação incomum, para as pessoas de sua geração: obteve três graduações —
em Odontologia, Direito e Administração — numa época em que mestrado e
doutorado não faziam parte das cogitações da maioria dos que alcançavam o nível
universitário.
Além disto, era um calígrafo de
qualidades excepcionais. Sua caligrafia, da qual ainda me lembro, parecia um
bordado. E possuía aptidões invejáveis para a pintura e o desenho. Escrevia e
falava com muita desenvoltura, era um excelente contador de histórias e
carregava consigo o traço comum aos de sua família: um apurado senso de humor. Embora
considerando que o seu humor fosse, às vezes, um tanto cáustico, puxado para a
mordacidade, ele matava a gente de rir.
Sinto saudades do tempo — não muito
tempo, infelizmente — em que convivemos, de forma mais próxima. Foi numa época
em que ele se mudou com a família, da cidade de Viçosa do Ceará, onde temos as nossas
raízes, para a capital do Estado. E fomos vizinhos, por alguns anos, já que
construiu sua casa bem ao lado da nossa. Até que, que levado pelo destino, fui
transferido para outro rincão deste país. Nunca mais voltei a morar em
Fortaleza e, aí, perdi com ele esse contato direto.
Mas guardei, na memória, o seu jeito
de contar as coisas, o seu timbre de voz, grave e gutural, o seu modo de rir ao
final da narrativa e, principalmente, algumas das suas melhores histórias.
Dentre suas características mais relevantes,
merecem destaque a sua prodigiosa capacidade de observação e uma memória
fotográfica, que lhe possibilitavam, depois de um simples e casual encontro com
alguém, descrever, nos mínimos detalhes, a roupa, os acessórios e complementos
que aquela pessoa estivesse trajando ou utilizando. E nem precisava estar, por
algum motivo, interessado naqueles detalhes. Era algo que fazia de forma
natural e espontânea. O tio Geminiano era um observador inato das pessoas e do
que acontecia à sua volta.
Pois foi em razão disto que, certa
vez, passando por uma rua lá na cidade em que nasceu e morou até a sua
transferência para Fortaleza, encontrou-se com um promotor de justiça, o Richa,
com quem tinha acalorados debates nas audiências. Mas com quem, por outro lado,
longe do ambiente forense, mantinha relações cordiais, como convém a dois
profissionais do Direito. E vinha o dito promotor acompanhado por Sirlene, sua
mulher, que, segundo observou o meu tio, trajava um vestido que lhe acentuava
as formas, ostentando um generoso decote.
Era um dia de sábado e, como ninguém estava com tanta pressa, foram além
do cumprimento de praxe e pararam um pouco para conversar. Falaram sobre generalidades,
até que se despediram e todos seguiram o seu caminho. O ilustre representante
do Ministério Público, devidamente acompanhado, para um lado e o advogado para o outro. Mas,
algum tempo depois, retornando sobre as próprias pisadas, o tio Geminiano
tornou a encontrar o casal, um pouco adiante do ponto em que se despedira dele.
Marido e mulher olhavam para o chão da rua, que era revestido por pedras
poliédricas, como se procurassem por algo. E, ao se aproximar, perguntou se
haviam perdido alguma coisa.
— Foi o colar de Sirlene, que
arrebentou o fio e as pérolas se espalharam por aqui, respondeu o promotor.
Meticuloso e detalhista como
costumava ser, o irmão do meu pai, já começando a olhar para o chão, numa
tentativa de ajudar, acrescentou:
—
Eu me lembro. Era um colar de uma volta só, que começava com pérolas
menores nas extremidades e, no centro, tinha umas pérolas bem grandes...
Diante do que, algo surpreendido com
a observação do outro, o promotor aparteou o advogado, perguntando-lhe,
diretamente e sem rodeios:
— Por acaso, tu estavas olhando para
os peitos de Sirlene?
Ao que o tio Geminiano, já
desistindo de ajudar na busca, respondeu, do único jeito que lhe caberia fazer,
diante de uma situação inusitada daquelas:
— Claro que não, Richa! Eu estava,
apenas, apreciando a beleza do colar, que é, de fato, uma belíssima joia!
Só não sei é se, ao dar esta
resposta, o meu tio foi totalmente sincero com o ciumento e tosco promotor de
justiça. Pois, pelo que se comentava na cidade, nem a Sirlene era de se jogar
fora e nem era, por assim dizer, um modelo de virtude.
Êta gente fofoqueira!
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