Crônica da semana/QUE POVO FEIO, MEU DEUS!




                 Wagner Fontenelle Pessôa                                         

Lá pela metade dos anos de 1960, no princípio da minha adolescência, morei, pela primeira vez, na bela  e então provinciana cidade de Natal. Naquele tempo, as coisas, no Brasil, no Nordeste e no Rio Grande do Norte, eram bem diferentes do que são agora. O desenvolvimento era pequeno e havia poucas estradas pavimentadas, Em lugar disto, muitos caminhos poeirentos, estreitos e de traçado irregular. De tal forma que, naquela época, viajar pelo interior era uma experiência que se situava entre uma aventura não muito divertida e um cansativo exercício de paciência.

            Lembro-me de certa vez, por exemplo, que, a convite de um dos meu colegas no Colégio Estadual do Atheneu Norte-Riograndense, fomos passar um final de semana na fazenda do pai dele, que ficava no município de Caicó. Para isto, alguém teve a iniciativa de alugar um desses ônibus típicos de uma linha urbana e que, para cumprir os menos de 300 quilômetros de distância que separava as duas cidades, levou quase a noite toda. Pense numa viagem desconfortável!

            A cidade, em que pese a hospitalidade dos nossos anfitriões, muito própria, aliás, da gente nordestina, foi a mais quente que me lembro de haver conhecido em toda a minha vida! Às quatro horas da madrugada, o suor escorria pelo corpo e impedia que se dormisse direito! Mas, ao término daquela sauna seca, que durou todo o final de semana, e de um percurso triste de ruim — tanto indo, quanto retornando — chegamos de volta a Natal dizendo, aos que não foram, que havia sido um maravilhoso programa. Que se existe uma criatura para gostar de um "programa de índio bêbado" desses é o tal do adolescente!

            Pois foi justamente nessa época e nessa mesma região, de estradas apenas carroçáveis, que o sujeito tentava avançar, numa pequena camionete, indo de Parelhas para Caicó, quando teve a sua marcha interrompida por umas cabras, cabritos e bodes que lhe atravessavam o caminho. Estancou o veículo e, enquanto esperava que terminasse aquela travessia caprina, teve uma ideia, tão esperta, quanto desonesta. Resolveu recolher e se apropriar de alguns animais daqueles, para levá-los consigo.

            No que pensou, foi logo fazendo e, antes que aparecesse o dono da "criação", colocou uma meia
dúzia na carroceria e jogou uma lona sobre os animais, para não chamar a atenção de ninguém. Viajou mais um tanto naquela estradinha ruim até que, já se aproximando do destino, lembrou-se que, na chegada a Caicó, iria passar por um Posto Fiscal e não tinha como explicar o transporte daqueles animais.

            Mas, logo em seguida e antes que imaginasse a desculpa que iria dar, vislumbrou uma pequena venda à beira da estrada, dessas, que acodem às necessidades do povo da região, o que lhe fez nascer uma ideia. Parou e comprou uns chapéus de couro em número suficiente para prender um à cabeça de cada caprino. Tornou a jogar a lona sobre eles e ao receber a ordem de parada na barreira fiscal, depois de pedir e examinar seus documentos, o funcionário indagou:

            — E aí na carroceria, o que é que vai levando?

            O dono da camionete, com a cara mais lavada, respondeu, com ensaiada displicência:

            — São só uns romeiros a quem dei carona porque vão tentando chegar à Paraíba, para uma festa religiosa.

            Meio incrédulo, no entanto, o fiscal achou melhor verificar essa história de "romeiros". Levantou a lona e o que viu foram aquelas caras compridas, com olhos esbugalhados, aquelas bocas retas, mas não os chifres, que se encontravam escondidos pelos chapéus de couro. Olhou prá cara de um, olhou prá cara de outro, deixou a lona cair novamente e tornou a se aproximar da cabine do motorista. Disse que ele poderia prosseguir a viagem, mas não sem, antes, deixar escapar um comentário, baixando o tom da voz:

            — Ô povo feio!

            E o motorista seguiu o seu caminho, aliviado e dando graças por estar na região do Seridó... Uma região que também conheci e que me impressionou por uma particularidade: que povinho feio, meu Deus!

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