Crônica da semana/ BORNÉU
Wagner Fontenelle Pessôa |
Não
me lembro, com precisão, quando foi que isto se deu. Mas sei que o fato ocorreu
durante uma reunião de família da mãe dos meus filhos, que é muito numerosa e cheia
de ramificações. Graças a isto, alguns de seus membros acabaram convertendo uma
propriedade rural que pertenceu à sua matriarca — em Macuco, que fica na Região
Serrana do Estado do Rio de Janeiro — numa espécie de clube, destinado a
congregar os pertencentes à sua genealogia.
Estive
por lá em várias das diversas ocasiões nas quais, a propósito disto ou daquilo,
promovem encontros familiares, aos quais comparecem tios, primos, parentes mais
próximos ou distantes e agregados. Alguns que possuem casas ou outras
propriedades nas proximidades e outros, que se hospedam nos próprios
alojamentos que o clube mantém, justamente para este fim.
Como
sempre ocorre nas reuniões de famílias grandes, o que é bem o caso, esses
encontros são ruidosos e, neles, acontece todo tipo de coisa. Porque a eles
comparecem representantes de muitas gerações: idosos, gente casada e gente
solteira, adolescentes e crianças, de colo ou não. Dentre os quais, há uns tios
mais velhos insistindo em contar as histórias dos ancestrais para os mais novos,
que, na maior parte das vezes, não estão nem um pouco interessados em ouvir
aquilo.
Além disto, como não poderia deixar de
ser, tem menino que cai e se machuca, tem adulto fora de forma que resolve
participar do futebol — e passa o resto do evento mancando, com um dedo
estuporado ou com uma contratura muscular — uns que abusam do pecado da gula e terminam
o encontro só tomando remédio e chá. Tem conversas animadas, tem choro e
risadaria, uma comilança sem fim e até algumas altercações, entre primos ou
irmãos. Como em toda família comum, aliás.
Mas
há um episódio, desses encontros, do qual eu me lembro em especial e que se deu
aí, pelo ano de 1986 (ou algo em torno disto), justamente durante uma dessas
reuniões da família. O fato é que, quando chegava por ali aquele monte de
adolescentes, de todos os ramos da família, havia um certo e compreensível
"frisson" entre as meninas que residiam na cidade de Macuco e que
fica a cerca de um quilômetro ou pouco mais do que isto da propriedade
transformada em clube.
Assim,
quando se acabava o dia de intenso movimento, a meninada partia para a cidade,
em busca do previsível sucesso com as garotas do lugar. Havendo algum parque
montado por lá, melhor ainda. E, neste caso, arrastavam consigo alguns primos
menores ou algumas primas também. Porque, à noite, não havia nada de
interessante para eles fazerem no clube, onde os mais velhos jogavam cartas,
ficavam numa cantoria sem fim ou se recolhiam mais cedo, para mais cedo
começarem o dia seguinte.
Quem
não gostava nada disto, porém, eram os rapazes residentes na cidade, por razões
que a obviedade da situação dispensa esclarecer. Faziam cara feia nos lugares
onde os outros chegavam e, de quando em vez, havia piadinhas de lá e de cá. Até
que, numa dessas ocasiões, a situação ficou mais tensa e acabou chegando às
vias de fato num barzinho onde uns e outros se encontraram.
Empurrões e safanões para lá e para cá,
acabou sobrando alguma troca de socos, de uns nos outros e dos outros em uns, a
que o dono do estabelecimento pôs fim, com o auxilio da polícia local, que
determinou aos visitantes que voltassem para casa (no caso, para o clube), sem
maiores consequências. Inclusive, porque a família era muito conhecida e
considerada na cidade e onde, afinal de contas, estavam suas raízes também.
Retornaram
agitados e agitando a calmaria da noite dos mais velhos, falando todos ao mesmo
tempo e, cada um, querendo contar o que testemunhara no correr da confusão,
para, como é compreensível, atribuir toda a culpa pelo episódio aos rapazes da
cidade. Foi quando, em meio àquele falatório todo, prestei atenção ao Rodrigo,
um gordinho ainda bem pequeno e engraçadíssimo — primo, com alguns graus de
distância, dos meus filhos — que, para o seu azar e minha sorte, havia, naquela
noite, feito parte do grupo que fora a Macuco.
Bem
perto de mim e muito agitado, ele tentava, em meio à gritaria dos demais,
contar a sua parte da história. Era dessas crianças que falam com a língua
batendo nos dentes e, sem que ninguém desse muita atenção ao seu testemunho,
ele levantava os braços e dizia:
—
E o cara lá ficou gritando: "Isso aqui não é Bornéu! Isso aqui não é
Bornéu!"
Com
efeito, nem Macuco era Bornéu e nem o pequeno Rodrigo, naquela altura da vida, tinha
muita noção de como era o ambiente de um "bordel" daqueles, dos
velhos tempos, para entender a indignação do proprietário do barzinho onde se
deu a quizumba.
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