Crônica da semana/ MUITO APROPRIADO, REALMENTE...
Wagner Fontenelle Pessôa
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Se alguém resolvesse, algum dia,
escrever um livro, somente contando as histórias que se passaram no Liceu de
Cachoeiro de Itapemirim, naqueles doces anos em que os meus irmãos e eu
estudamos por lá — como parte de uma geração que era feliz e não sabia — o que
não haveria de faltar era material para isto. Porque o nosso inesquecível
colégio, então chamado de Colégio Estadual e Escola Normal Muniz Freire, era um
repositório, verdadeiramente singular, de alunos, bedéis e professores, que
marcaram as lembranças de muitas gerações. Como a nossa e tantas outras.
Eram
tempos bem diferentes dos que as escolas vivem hoje, porque cada um conhecia e
respeitava muito bem o seu "status" e o seu papel naquele respeitável
estabelecimento. E ali era possível estudar da 1ª série do ginásio ao 3º ano
dos cursos científico ou normal (correspondentes, na estrutura atual, à 5ª
série do ensino fundamental e à 3ª série do ensino médio, respectivamente).
O
ingresso nessa incrível experiência de ser um "liceísta", era
precedido de uma prova de preparo mínimo, chamada de "exame de
admissão", pela qual deveriam passar, obrigatoriamente, os egressos do
curso primário, sem direito à reserva de cotas. Inclusive, porque o
grupo primário era gratuito e em seus bancos se sentavam, lado a lado, os filhos das famílias mais pobres, remediadas ou de melhor situação financeira, independente de raça ou credo religioso.
Também
não alterava nada se o menino, no recesso do seu lar, gostava de vestir as
roupas e calçar os sapatos da mãe ou se preferia outro tipo mais másculo de
diversão. Porque a questão da sua sexualidade — reconheçamos, muito mais
reprimida, naqueles tempos — não lhe retirava, mas também não lhe atribuía
vantagens sobre os seus colegas de turma, em nenhuma espécie de seleção ou
concurso.
Voltando,
porém, ao ambiente do Liceu e às figuras que faziam parte dele, existiam por lá
uns tipos verdadeiramente inesquecíveis. Poderia falar ou escrever sobre eles
durante horas. Mas, neste momento, o que me vem à memória, em particular, são
alguns dos seus diretores. Quando cheguei ao Liceu, quem ocupava a direção era
o Dr. Wilson Rezende, que costumava fazer uma peroração ao alunos, postos em
forma e por turma, antes de se iniciarem as aulas do dia. E tome lição de
moral, para aquela molecada entender quem era quem naquele colégio!
Algum
tempo depois, ele foi sucedido na administração do colégio por outro de seus
docentes, o Professor Athayr Cagnin, que tinha uma natureza mais reservada e
era menos falante do que o Dr. Wilson. E quando saí do Liceu, menos pela minha
vontade do que por força de uma transferência da minha família, ainda era ele
quem ocupava o cargo.
Antes
dessa fase, porém, respondeu pela sua direção um professor de Matemática,
figura meio folclórica entre os alunos — e isto, no bom sentido — porque era um
homem mais idoso, que falava manso e baixo, não se sabe se pelo seu próprio estilo
ou se por um certo cansaço que, não poucas vezes, acomete os professores em
final de carreira. Mas era, segundo diziam os que o conheceram na sala de aula,
um homem de aguda inteligência e capaz, quando oportuno, de uma fina ironia.
Certa
vez, por exemplo, uma turma de alunos mobilizou-se para fazer uma viagem, não
sei exatamente para onde, juntando algum dinheiro, conseguindo alojamentos e
coisas do tipo, para comemorar a conclusão do seu curso. E a comissão incumbida
dos preparativos, recorreu ao velho diretor, pedindo que os ajudasse com uma
espécie de pedido oficial, para arranjar um ônibus, imprescindível para que a
tal excursão pudesse ser realizada.
De
boa vontade, o Prof. Ávila mandou preparar a tal solicitação e os alunos
acabaram resolvendo o problema do transporte, para viabilizar o sonhado
passeio, que durou alguns dias e fez a alegria dos concludentes de curso do
Liceu, naquele ano. Passearam à vontade, mas, no momento de retornar a
Cachoeiro, alguém se lembrou que ninguém havia providenciado uma lembrança, que
fosse, para agraciar o prestimoso diretor, a quem, de certa forma, deviam a
realização daquela viagem.
Estando
todos de acordo com isto, fizeram uma espécie de arrecadação de algum dinheiro
que os alunos ainda tinham, saindo em busca de um presente, com que pudessem
mimosear o bondoso professor. E como estava em moda, naqueles tempos, uns
cavalinhos de massa, recobertos de feltro marrom, que imitava o pelo dos
animais, resolveram que isto seria um bonito presente para a turma lhe oferecer.
No
dia seguinte, após o retorno, foram todos à sala do diretor do Liceu, que os
recebeu com simpatia, e lhe entregaram o presente trazido da excursão.
Esperaram pela sua reação, enquanto o professor Ávila desembrulhava o pacote e
abria a caixa com a lentidão de gestos que lhe era característica. Olhou para
aqueles dois cavalinhos de massa e depois para os alunos, reunidos em torno
dele, dizendo baixinho:
—
Muito apropriado, realmente... Sempre que eu olhar para esses animais, irei me
lembrar de vocês!
Ninguém
se aguentou com a frase de duplo sentido do velho professor de Matemática e uma
gargalhada geral tomou conta da sala da direção do Liceu. Bons tempos aqueles,
em que um educador fazia uma brincadeira dessas e ninguém pensava em
processá-lo por danos morais!
Um comentário
Estudei no Liceu de Campos, e era também, um berço de ¨causos¨, certa vez numa aula de religião, proferida por uma beata tradicionalista, a sala toda escura e sob a luz do projetor de slides, uma molecada se deliciava com umas revistinhas proibidas, quando a professora se deu conta, recolheu, muito ruborizada, o material e os moleques levando-os para a diretoria. Contaram depois, os travessos, que o diretor , um senhor muito sério, de aproximadamente 70 anos, folheou todo o material, demonstrando que estava apreciando a literatura de Zéfiro.
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