Crônica da semana/ NA PRIMEIRA NOITE...


    Wagner Fontenelle Pessôa                      

Se existe um ditado mais do que verdadeiro, por certo, será aquele que nos sugere "matar o galo logo na primeira noite". O dito, resulta de uma anedota — antiga e muito conhecida — acerca de um galo, que resolveu cantar a plenos pulmões, bem abaixo da janela do quarto de um casal que tentava usufruir da sua noite de núpcias. E, com isto, atrapalhava a concentração e o desempenho do noivo.
            Impaciente com a estridência do galináceo, que se sentia o rei do terreiro, o marido recente apanhou uma espingarda, que municiou com dois cartuchos. E, do alpendre da casa mesmo, fez mira no responsável pela cantoria. Disparou as duas cargas, o que nem seria preciso, porque, na primeira delas a ave cantante já havia entregue sua alma a Deus e jazia, caída de costas no chão do quintal, com as pernas apontando para cima.
            Mas, ao voltar ao leito conjugal, o destemperado atirador teve que ouvir da mulher um protesto veemente, pela brutalidade desmedida que empregara para resolver uma questão de tão pouca significância. Em razão do que, antes de meter-se de volta nos lençóis, olhou para ela bem sério e respondeu, de forma lacônica:
            — O galo a gente mata é na primeira noite...
            E nada mais disse, nem lhe foi perguntado, constando que, a partir de então, a mulher não voltou a questionar as decisões do varão. E foram felizes pelo
resto de sua convivência conjugal, sendo por isto que a frase ficou valendo como a síntese do entendimento de que, certos problemas, a gente resolve é logo que surgem. Ou não conseguirá resolver nunca mais, depois de passado algum tempo.
            Nem só nas anedotas, porém, é que essas circunstâncias ocorrem. Existem situações reais em que coisas assim, de fato, acontecem e funcionam. Inclusive — para não fugir muito ao contexto dessa história do galo que acabo de lembrar — no início de alguns casamentos. Porque é no princípio da vida a dois que se estabelecem certas regras entre o marido e a mulher, que ambos haverão de observar, dali por diante.
            A propósito de falar nisto, por exemplo, eu me recordo de um caso muito pitoresco, que envolveu um casal de amigos dos meus pais, que não identificarei por razões que são mais do que evidentes. Mas o fato é que ele pertencia a uma família numerosa. Eram bem uns doze irmãos e o pai, homem de muitas posses, quando um dia se foi, deixou a viúva e os herdeiros relativamente bem aquinhoados.
            O marido era um desses tipos de inteligência fulgurante. Não havia tido muito estudo, no sentido formal. Mas compensava isto — e, acreditem, com algum lucro — pelo seu autodidatismo. Foi um dos leitores mais vorazes que me lembro de haver conhecido e lia, praticamente, sobre qualquer coisa e tudo o que lhe caísse às mãos. O seu tema predileto era a política, mas era uma dessas pessoas aparelhadas para conversar sobre quase todos os assuntos.
            Tinha uma fala mansa, meio arrastada e pontuada por corruptelas, como costuma falar a gente do meio rural naquela região do Espírito Santo, de onde provinham seus pais. Ela, por outro lado, pertencia a uma família menos destacada socialmente, mas era uma mulher muito inteligente, possuidora de grande sagacidade e dona de uma independência de pensamento pouco comum, para as mulheres de sua geração. E isto estabelecia entre eles, em alguns momentos, uma espécie de "medição de forças", quando se tratava de decidir sobre determinadas questões.
            Formavam um casal singular, sobretudo pelo contraste entre o temperamento de um e de outro. O marido, um tipo mais tranquilo, embora falasse alto e com um timbre de "taquara rachada", como todos os da sua linhagem, aliás. A mulher, agitadíssima! E, para me aproveitar da definição de um velho amigo meu, "em casa, ele é quem estabelecia a lei, mas era ela quem firmava a jurisprudência".
            Eram apenas namorados, assim sem muita perspectiva de algum compromisso mais sério, quando certa manhã, os dois se encontraram numa rua, como se fosse por acaso. Ela ia ao mercado comprar alguma coisa e ele lhe ofereceu uma carona. Mas, em lugar de levá-la ao mercado, levou-a a um cartório de registro civil, cujo tabelião era seu amigo e já tinha tudo preparado.
            Sem nada entender, ela lhe perguntou que estavam fazendo ali. Ao que ele respondeu, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo:
            — A gente vai se casar, ora!
            E se casaram realmente, desse jeito meio surrealista. Na sequência, viajaram os recém casados para uma das praias do litoral capixaba, onde foram aproveitar os primeiros dias da lua de mel. Mas, ao chegarem à pousada onde se hospedariam e já na entrada do quarto, a noiva, tomada pelo natural romantismo dessas ocasiões, disse ao seu recente marido:
            — Meu bem, me carrega no colo?
            Foi quando ele definiu a primeira regra do casamento deles:
            — Me carrega no colo, coisa nenhuma! Dá cá a "carcunda" que eu vou é entrar montado "nocê"!
            Na realidade, não foi bem assim que funcionou nos tempos que viriam depois. Mas não deixou de ser uma forma engraçada e inusitada de "matar o galo na primeira noite".

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