Crônica da semana/AQUILO É QUE FOI UMA SAPATADA!
Wagner Fontenelle Pessôa
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Muitas pessoas, algumas mulheres
inclusive, não sabem que os sapatos têm uma alma. Mas têm! E o que
se chama de "alma do sapato" é uma peça fina, posicionada
longitudinalmente no centro da palmilha, que pode ser em aço,
madeira, arame ou, até mesmo, em plástico. Mas, qual é a serventia
disto?
A sua principal função é, como
explicam os especialistas no assunto, acompanhar a curvatura do pé
para sustentá-lo, estruturando e dando estabilidade no andar.
Portanto, é de se deduzir — embora eu não entenda coisa alguma da
engenharia dos calçados — que essa tal "alma" seja um
componente muito mais importante nos sapatos femininos, sobretudo os
de salto mais alto, do que nos calçados masculinos. Por motivos que
parecem evidentes.
Mas, como eu vinha dizendo, a função
dessa "alma" é dar estabilidade no caminhar. Não é a de
receber o peso de quem estiver calçando aquele sapato, porque ela
não foi projetada para isto. O peso, neste caso, deve estar
distribuído entre o salto e a parte da frente do calçado.
Era este o motivo pelo qual, de vez
em quando, ao chegar em casa e encontrar algumas de suas roupas e um
ou outro de seus sapatos fora do lugar — desarrumados ou guardados
fora das gavetas e caixas em que deveriam estar — Gertrudes dizia,
em tom de bronca, à filha pequena, de uns oito ou dez anos de idade:
— Cristina, eu já lhe disse que
não mexa nos meus vestidos e, principalmente, que não calce os meus
sapatos!
A pequena fazia aquele ar de que "eu
não fiz nada" e, invariavelmente, negava que
houvesse vestido
ou calçado as roupas e os sapatos da mãe. Embora esta bem soubesse
que a maioria das meninas costuma fazer isso, como ela própria já
fizera um dia. Do mesmo modo que mexem em seus apetrechos de
maquiagem e, não poucas vezes, estragam seus batons e desperdiçam
seus esmaltes. Enfim, essas coisas de meninas que aspiram ser
mulheres.
Há uma fase no desenvolvimento das
garotas em que elas começam a querer ficar parecidas com as mães. É
quando se aproveitam da ausência delas, para experimentar suas
roupas e se empoleirar nos saltos altos das mesmas. Despencam de cima
deles algumas vezes e lhes quebram os saltos ou suas "almas",
noutras tantas. Justamente por terem os pés pequenos e pisarem numa
parte do calçado que não foi feita para receber peso, como já
explicado.
Assim, mesmo que a menina negasse, a
mãe insistia na reprimenda:
— Olha aqui, Cristina... Um dia
você ainda vai acabar quebrando a "alma" de um dos meus
sapatos. E nesse dia, eu nem sei o que serei capaz de fazer com você!
Eu estou lhe avisando, hein?!
A filha, menos interessada na bronca
materna — cuja razão de ser ela a impressão de não compreender
bem — e mais atenta ao que a estivesse ocupando no momento, deixava
que o assunto morresse nas palavras e ameaças da mãe e no único
argumento de sua defesa, que era a negativa da autoria. Até que,
certo dia, chegando mais cedo do que de costume à casa, ao se
aproximar do quarto, com aquele pisar macio que a caracterizava,
Gertrude percebeu que havia alguém lá dentro. E pensou, com os seus
botões:
— Ah... É hoje que eu pego a
Cristina mexendo nas minhas coisas e ponho um fim à brincadeira
dessa pirralha!
Ato contínuo, pronta para flagrar o
crime e aplicar o castigo, bateu a mão na maçaneta e escancarou a
porta do aposento. Sendo desta forma que viu, pela primeira vez,
vestindo uma de suas melhores camisolas e calçando aquele par de
sapatos vermelhos, de sua predileção, ninguém menos do que
Leôncio, seu marido e pai da pequena Cristina, que, de fato e afinal
de contas, não era mesmo merecedora da suspeita e da acusação que
lhe lançara Gertrude.
O que aconteceu depois, eu não vou
esmiuçar, porque detesto esse tipo de futrica. Ademais, é assunto
de casal, resolvido entre quatro paredes e pelas conveniências do
casamento de cada um. Mas, para quem estava temendo perder a "alma"
de algum sapato, aquilo, sim, é que foi uma verdadeira "sapatada
na alma"!
Só me cabe acrescentar que, deste
jeito e finalmente, foi que Leôncio saiu do armário e encontrou uma
razão para viver...
2 comentários
Parabéns pelo belo texto, meu amigo Wagner!
Você consegue transformar qualquer assunto em risos da alegria de se ler.
Risos... Valeu, querida Sueli. Mas a ideia é mesmo esta. Tudo de bom, menina!
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