Crônica da semana- FALAVA PELOS COTOVELOS!

           
Wagner Fontenelle Pessôa                                  
 Se existe uma situação engraçada, é aquela em que a pessoa dá um cochilo bem no meio de uma conversa e, ao acordar, tenta deixar a impressão de que "não estava dormindo". A parte boa é que isso, normalmente, não aborrece o interlocutor. Ao contrário, costuma ser motivo de riso e diversão, sobretudo, quando existe mais gente presenciando a mancada, que costumamos chamar de "pescar uma piaba".

            Quando trabalhei em Natal — como professor do que é, hoje, o Instituto Federal do Rio Grande do Norte — convivi com um casal de professores cujo marido tinha, exatamente, essa característica. Todos os dias, por volta de umas dez horas da noite, batia nele uma sonolência incontrolável. Então, fosse lá onde estivesse, apoiava a cabeça em algum lugar e dormia, como se acomodado em sua própria cama. Uns quinze a vinte minutos depois ele despertava, voltando a participar da conversa como se nada houvesse acontecido.
            Os que se relacionavam com eles já sabiam disso. De tal sorte que, quando o Josué se entregava àquele cochilo, em meio à conversa dos amigos e alheio aos ruídos do ambiente, ninguém estranhava. O assunto continuava e, ao retornar daquele mergulho nos domínios de Morfeu, ele voltava a participar do que dizia o grupo, como se jamais houvesse se ausentado dele.
            Via de regra, isto não lhe criava nenhum embaraço ou constrangimento. Exceto numa oportunidade em que ele e a mulher recebiam um casal de professores visitantes da universidade em que lecionavam e a quem haviam oferecido um jantar em casa. Após a refeição passaram à sala de visitas e a conversa prosseguiu entre os convidados e anfitriões. Até que chegou a hora do seu sono inarredável, ele encostou a cabeça no ombro da mulher e apagou.
            Algo constrangida, ela explicou a situação aos convivas, que, gentilmente, disseram que não se preocupasse com aquilo. E, até para aparentar naturalidade em relação ao fato, tocaram a conversa adiante. Tudo teria terminado bem, se, ao acordar, algum tempo depois — estonteado pelo cochilo e pelos drinques da noite — o Josué não houvesse batido na perna da mulher e dito, alto e bom som de voz:
            — Vamos embora, querida, que esse povo deve estar é querendo se deitar...
            Imaginem só o vexame dela, já que se encontravam em sua própria casa! Mas sempre me divirto ao lembrar desse fato, porque esse negócio de cochilar fora de hora e lugar é, também, uma das características da minha família paterna. Não sei onde e nem quando foi que isto começou, mas me lembro que a minha avó já era assim, como assim também são o meu pai, os meus tios e vários dos meus primos. Todos nós, em algum momento, tiramos uma pestana em ocasião pouco apropriada.
            A minha avó Hilda até desenvolveu uma estratégia esperta, quando recebia visitas em casa e notava que estava prestes a "apagar": oferecia um licorzinho aos visitantes e se ausentava da sala, para ir buscar o que oferecera. Quando começava a demorar muito, algum filho ou nora saía a procurá-la e, não poucas vezes, a encontrava tirando uma pestana em algum lugar da grande casa, já com a bandeja pronta para levar o licor até a sala. A família sabia do seu esperto esquema, mas, felizmente, os de fora não costumavam perceber aquilo.
            Deu-se, porém, que certa vez, indo passar uma temporada conosco, que morávamos noutro estado e região, fez amizade com algumas vizinhas, de faixa etária mais compatível com a dela. E, assim, durante aquele período, tanto ela as visitava, quanto era visitada por aquelas senhoras, num exercício de cortesia recíproca.
            Pois houve um dia em que uma delas — italiana que imigrara para o Brasil na época da segunda grande guerra — estava lá em casa e a conversa acabou se estendendo mais do que deveria, graças

à incansável disposição da gentil visitante para matraquear. O fato é que, a certa altura, a minha avó dormiu, enquanto a mulher tentava lhe passar a receita de alguma comida típica de sua terra.

            A visitante nem percebeu, mas a minha mãe, sim. E aí, para evitar o vexame, assumiu a conversa com a dona Artemísia, que acabou de dar a receita e passou para os próximos assuntos da pauta. De tal sorte que, como era de se esperar, num certo momento a minha avó acordou e, querendo deixar a impressão de estava ouvindo toda a conversa, embora com os olhos fechados, bateu na própria perna, num gesto de entusiasmo, deu uma sonora gargalhada e disparou, para reingressar na conversa:
            — Mas que coisa interessante!
            Foi quando a minha mãe segurou o braço da vovó e chamou a sua atenção, em tom discreto:
            — Dona Hilda, por favor... Ela está contando a triste morte do marido dela, num campo de concentração...

            Do episódio, felizmente, não restou nenhum ressentimento para a narradora. Até porque, como foi observado, dona Artemísia nem percebeu o cochilo e a gafe da minha avó. Pois, pelo que ainda me lembro dela, a italiana gesticulava e "falava pelos cotovelos"!

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