O DIA EM QUE SATANÁS FEZ ALGO QUE PRESTASSE

Wagner Fontenelle Pessôa                                   
            Em toda cidade, de médio ou pequeno porte, existem aqueles tipos populares, que todos conhecem e identificam. Existem os que são realmente perturbados, aos quais "falta algum parafuso", mas também existem os que são apenas inconvenientes ou inoportunos, pela forma como se comportam, sem que sejam tidos como "ruins da cabeça".
            Os primeiros, acabam sendo alvo da compreensão e, não raramente, da estima da coletividade, enquanto os últimos, pela sua habitual conduta desassisada e imprevisível, dividem opiniões: há quem goste muito deles e quem não os suporte, pelos embaraços que, às vezes, eles criam para os de sua convivência.
            Tive um amigo assim quando morei em Natal, pela primeira vez, ainda como estudante secundarista. Chamava-se Alex e era um completo "sem noção"! Quem andava em sua companhia estava sempre pronto para alguma situação constrangedora ou ridícula, em que ele haveria de meter a turma.
            Eu poderia escrever um livro inteiro, só contando os desatinos que ele cometia, mas não é o que farei, pelo menos, nesta oportunidade. Porque o meu propósito não é falar do Alex, mas de um outro desses tipos, que, embora sendo meu conterrâneo — de Cachoeiro de Itapemirim, como eu — não cheguei a conhecer pessoalmente. Pois quem me contou essa história, foi um amigo que tenho, ainda morando por lá, que é o Japonês (e que, de japonês, só tem mesmo o apelido e uns traços fisionômicos puxados ao asiático), um artista e artesão de mão cheia.
            Segundo o narrador, o personagem se chamava Valdir Mendes, que era um assíduo frequentador de um bar que havia bem em frente ao Cine Teatro Broadway, numa curva da Rua Capitão Deslandes. Era o "Bar do Ramon", mais conhecido como CDM (uma sigla que não posso traduzir, por respeito aos leitores), graças à completa bagunça em que os frequentadores o transformavam, quando a casa estava cheia. E o tal Valdir Mendes, de tantas que aprontava — com todo mundo e qualquer um — acabou por ganhar o apelido de "Valdir Satanás". Porque o seu prazer era não deixar ninguém ficar sossegado, quando ele estava por perto.
            Um pouco adiante do "Bar do Ramon" está uma das cabeceiras da ponte de ferro, pela qual os trens da antiga Leopoldina cruzavam o Itapemirim, de uma margem à outra. E, presa a ela, uma passarela, com piso de tábuas, pela qual os pedestres também cruzavam o rio que dá nome à cidade. Mas houve um tempo em que, por descaso, sabe-se lá de quem, algumas dessas tábuas se soltaram e a travessia a pé precisava ser feita com muita cautela. Foi quando se deu o caso que o Japonês me contou e que eu pretendo reproduzir.
            Uma senhora ia atravessando a ponte de ferro de mão dada com uma filha pequena, quando a criança escapou da mãe, pisou no lugar errado e vazou em direção ao rio. A mãe gritou, em desespero, fazendo com que a turma do bar corresse até a beira do Itapemirim, a tempo de ver a pequena ainda afundando.
            De repente, a menina veio à tona num determinado ponto e o "Valdir Satanás", movido pelo espírito de solidariedade (e um pouco pela bebida, talvez), não pensou duas vezes: atirou-se às águas do rio — que é fundo, cheio de pedras e tem uma correnteza enganosa — e nadou até o local onde a menina emergira por último. Mergulha daqui, mergulha dalí, mergulha mais adiante, o fato é que, em certo momento, lá vem ele com a criança que tentava salvar. E que, efetivamente, salvou!
            No dia seguinte, "O Arauto", um dos mais importantes, se não o mais importante jornal da cidade naquela época, estampou na primeira página e com grande destaque:
            — Satanás salva um anjo!

            Deve ter sido esta a única vez em que o Satanás fez algo que prestasse. Mas isto ocorreu lá pelos idos de 1960. Se fosse nos dias atuais, em que a maioria dos pregadores promete desalojar o Satanás do corpo e da casa dos fiéis, seria um estrago monumental para a publicidade dessas igrejas! 

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