Crônica da semana/ JOÃO "FORMÃO"

Wagner Fontenelle Pessôa



Aquele, sim, era o que se poderia chamar de um tipo desajeitado! Costumava se atrapalhar com as palavras, embora, nem por isto, fosse de falar pouco. Pelo contrário, falava muito e bem depressa. Mas a impressão que se tinha, ao conversar com ele, era a de alguém que tentava se equilibrar sobre uma bicicleta ou patinete. Ia pelo impulso e acelerava para não cair. Ou seja, o João "Formão" estava para as palavras e frases, assim como um bote de alumínio está para um mar encrespado: navegava por elas ao sabor
das circunstâncias, compunha suas sentenças com o que lhe viesse à cabeça, mesmo que não fosse apropriado para aquilo que pretendia dizer.

            O apelido — pelo qual era conhecido e atendia — viera-lhe do ofício de carpinteiro, em cujo exercício, pelo que andei sabendo, não era menos desajeitado do que no manejo das palavras. E, também, pelo seu péssimo hábito de acertar o funcionamento de portas e janelas com o emprego da ferramenta inadequada, já que nunca se habituara ao uso da plaina. Se alguém tivesse a infeliz ideia de recorrer aos
seus serviços para ajustar algum encaixe em esquadrias, o João "Formão" solucionava a questão de maneira simplória e tosca, cavocando e arruinando os marcos e caixonetes, com a ajuda de uma única ferramenta: aquela que lhe servia de alcunha.

            Deve ter sido por isto que, quando assumi a chefia do Departamento de Administração na, então, Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte (que é, agora, o Instituto Federal do RN), fui encontrá-lo (sabe-se lá por obra de quem) chefiando a Seção de Manutenção da Sede. Mas recebi do meu diretor uma recomendação:

            — Não me tire esse sujeito dessa função! Porque, se ele retornar à marcenaria e ao trabalho de marceneiro, vai desgraçar as nossas portas e armários!

            Ordem dada, ordem cumprida. E a recomendação se tornou, como pude perceber com o passar do tempo, proveitosa para todos. Como chefe de seção e pela limitação que impúnhamos ao seu desempenho, o que lhe cabia era correr de uma ponta à outra dos prédios que compunham a sede daquela instituição de ensino. Verificava a existência de eventuais problemas e cumpria as determinações que lhe eram passadas — por mim ou pelo Pedro Leitão, que era o meu assistente no Departamento — mas sem que precisasse tomar qualquer decisão, além de acionar um eletricista, bombeiro hidráulico ou outro qualquer especialista da nossa equipe de manutenção. Afinal de contas, pior do que aquele sujeito que tem discernimento, mas não tem iniciativa, é aquele outro, que tem iniciativa, mas não tem discernimento.

            Mesmo assim, de vez em quando o "João Formão" ainda aprontava alguma coisa fora do esquema ou se valia de uma forma inusitada para explicar ou prestar contas de alguma incumbência que lhe fora dada. Como naquela ocasião em que ele esperava para falar comigo, enquanto eu terminava de assinar uns processos, quando tocou o telefone na mesa do assistente e, estando o Pedro fora da sala, eu lhe pedi que o atendesse para mim.

            Era a dona de uma empresa de confecções, que havia participado de uma licitação que realizáramos para comprar uniformes para os serventes, motoristas e pessoal de apoio: batas, calças, vestidos, sapatos, etc. Como de praxe, a cotação dos preços, entre os concorrentes, fora solicitada por item, porque o propósito seria o de obter o menor preço em cada item e não apenas no conjunto deles. Pois estava a dona Conceição querendo saber se a proposta dela fora vencedora parcial ou totalmente, quando o João me fez o favor de atender o telefone. Atendeu e me disse:

            — É aquela mulher da OLIGÓIS, doutor! Ela quer saber o resultado da carta convite para a compra dos uniformes.

            Ocupado, eu lhe disse que o processo relativo a essa compra estava bem ali, sobre a mesa de reuniões. Pois que abrisse o mapa comparativo dos
resultados e informasse o que ela queria saber.

            Ele abriu, olhou aquilo de cima até embaixo e retornou ao telefone com a resposta. E só então eu me dei conta da bobagem que fizera, quando o ouvi dizer:

            — Dona Conceição... A senhora ganhou as batas, mas perdeu as calças!

            Tomei um susto com a frase de duplo sentido que o João "Formão" construíra para informar à concorrente que ela vencera, apenas, no item das batas. Dona Conceição continuou a  participar das licitações de seu interesse, realizadas pela Escola Técnica de Natal, enquanto estive por lá. Porém, eu nunca mais consegui olhar para ela, que não me viesse à imaginação a sua figura, pequena e gordinha, usando apenas uma bata... Mas sem as calças!

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