Crônica da semana: APENAS UMA QUESTÃO DE TONALIDADE

Wagner Fontenelle Pessôa                              
Essas questões e questionamentos que giram em torno dos preconceitos e, mais objetivamente, da discriminação de certos grupos em relação a outros, é bem antiga, tendo sido causa de muitas guerras e conflitos sociais, no correr do tempo. A história da humanidade está repleta de exemplos em que pessoas, povos e civilizações que foram marcados e sangraram por isto.
            O sectarismo político, econômico ou religioso alcança um lugar destacado nesse contexto. Mas, de todas as motivações para os conflitos sociais e lutas fratricidas que se perdem na memória, a intolerância racial haverá de ser, com certeza, aquela que mais vítimas já produziu. E antes que algum historiador, impregnado pela doutrina marxista — ou mais apegado à justeza dos fatos — resolva me confrontar, com uma chatérrima explicação de que a causa de tudo é a luta de classes e que a mola propulsora da humanidade é o fator econômico, eu já me antecipo para esclarecer melhor, onde pretendo chegar.
            Esse tema da discriminação que decorre da etnia é mais agudo, em determinadas circunstâncias, porque alcança contornos que nem sempre são fáceis de perceber ou de enfrentar. Uma coisa, por exemplo, é o que se observa numa sociedade como a norte-americana, na qual a intolerância racial está posta de forma clara e assumida. Tanto de uma parte quanto de outra, sobretudo, entre brancos e afrodescendentes. Outra, bem diferente, é ver como ela se processa noutras sociedades, em que uma raça oprime e amesquinha as demais. Como aconteceu na África do Sul, onde, até algumas décadas atrás, o "aparthaid" era mais do que um abismo social entre negros e brancos, para ser
uma política de Estado, uma imposição da própria legislação.
            Para a minoria branca, naqueles tempos, os negros eram análogos a escravos, reduzidos à condição de "coisa", sem acesso, praticamente, a qualquer direito. E foi preciso que surgisse na sociedade sul-africana um homem como Nelson Mandela, com a compreensão de que não era possível e nem necessário suportar aquele "status quo", para retirar a sua gente de um verdadeiro estado de submissão e escravidão. Para os negros norte-americanos, também, a obtenção e garantia dos direitos civis, não foi fácil.
            Essa luta eclodiu nos anos de 1960, a partir de quando, sob duas lideranças, algo antagônica,s em seus métodos e propósitos — Martin Luther King e Malcolm X — os afrodescendentes (que, assim, passaram a se identificar por sua própria iniciativa), acabaram conseguindo derrubar barreiras legais e institucionais, que impunham a separação entre brancos e negros nas escolas, nos transportes coletivos e até mesmo nos banheiros públicos, para citar, apenas, alguns exemplos.
            As normas jurídicas, quanto a isto, acabaram sendo modificadas naquela década tumultuada pelos enfrentamentos raciais, mas o preconceito, o ranço e os ressentimentos, não foram aplacados tão facilmente. O processo para a garantia dos direitos civis dos negros norte-americanos, que começou no governo de Kennedy, ainda não fora totalmente pacificado, quando, quase vinte anos depois, assumiu presidente Jimmy Carter, que pretendeu marcar a sua gestão pela defesa dos direitos humanos. Embora nem sempre tenha sido bem sucedido em relação a isto.
            Pois dizem que este presidente ainda estava no começo do seu mandato, quando, certa vez, indo para algum compromisso oficial, sua comitiva teve a passagem dificultada por conta de um ônibus, dentro do qual ocorria uma grande confusão. O fato é que, alheios à nova ordem, alguns passageiros brancos insistiam em que os negros se acomodassem no fundo do coletivo. E não se misturando com eles, em qualquer dos assentos.
            Interrompida a passagem da comitiva e indo os homens de sua segurança apurar a causa daquilo, o presidente, inteirado da situação, resolveu dar uma demonstração prática de que assumira o governo verdadeiramente preocupado com o bem estar de toda a população. Contrariando a recomendação dos agentes de sua escolta, desceu do carro e subiu no ônibus, com o propósito de acalmar os ânimos. E ali, estabeleceu a nova ordem:
            — É o seguinte, pessoal... Nesta grande nação não temos mais diferença entre negros e brancos! Agora todo mundo é "azul" (que é, por lá, a cor dos democratas, partido pelo qual ele se fez presidente).
            Foi aplaudido de pé, sobretudo pelos afrodescendentes. E retomou a palavra, para completar o seu democrático discurso de pacificação dos ânimos, dizendo:
            — Mas, agora, vamos organizar isso aqui, porque o ônibus precisar sair para cumprir o seu trajeto, sem maiores problemas. Então, vamos combinar que os "azul-claros" irão sentar-se na parte da frente do veículo. E os "azul-escuros" tratem de sentar-se lá no fundo do coletivo!

            E, dessa forma, o Jimmy Carter resolveu o conflito, deixando evidente que o problema da discriminação racial pode não estar na cor. Mas ser, apenas, uma questão de tonalidade. E que o prezado leitor entenda como quiser...

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