Crônica da semana-TRÊS GERAÇÕES ANTES DA MINHA

Wagner Fontenelle Pessôa                             
Existem diversas formas ou circunstâncias mediante as quais uma pessoa pode evidenciar que ela é daquele tipo mesquinho. E a mesquinhez, necessário compreender, é um defeito que não se restringe à avareza de “quem tem” em suas relações com “quem não tem”. Se os abastados podem ser avaros, os menos afortunados também podem. Porque essa é, como tento dizer, uma marca do caráter individual, que independe da situação socioeconômica, das convicções religiosas ou das preferências ideológicas.
            Observo, no entanto, apesar da minha convicção de que se trata de algo personalíssimo, esse é um desvirtuamento do ser humano que pode ser transferido, pela educação ou pela convivência familiar. Afinal de contas, como gostava de dizer o meu avô materno, “pela convivência a gente pega tudo; até perna inchada!”. Reconheço que há certo exagero na frase — característico dos Fontenelle — mas, considerando que é possível pegar até perna inchada, por que não se pegaria o hábito da mesquinhez, pela convivência em família?
            Mas, voltando ao foco da questão, esse hábito da avareza pode ser percebido nas pessoas por pequenas reações, por atitudes de menor significado e nas coisas de menor valor que, não obstante, trazem à tona o avesso da desejável generosidade em relação ao próximo, que marca o estilo próprio e característico de determinadas criaturas. Ser mesquinho é uma condição que vem à tona, por exemplo, na dificuldade de emprestar certas coisas, como ferramentas, utensílios ou equipamentos a um vizinho, que está fazendo algum reparo ou preparando uma refeição em casa.
            Há pessoas que se sentem incomodadas quando alguém lhes pede emprestada uma simples escada de armar, para trocar uma lâmpada. E não me refiro àqueles conhecidos, que todos temos, acometidos pelo péssimo hábito de não devolverem o que tomam por empréstimo, mas ao contexto normal em que pessoas pedem algo emprestado, com a mesma naturalidade com que emprestam aquilo que lhes é pedido.
            Para mim, porém, há um tipo de mesquinharia que é emblemática: a que se refere à comida. Faço sérias restrições aos que são avaros em relação ao que comem e, sobretudo, aos que são incapazes de dividir a própria comida, por generosidade ou por cortesia. Conheço dessas pessoas que, se estiverem fazendo uma refeição ou prestes a fazê-la, recolhem a comida, caso chegue uma visita inesperada, para não precisar oferecê-la. E isso não é força de expressão.
            Dividir o alimento é, talvez, a forma mais primitiva de generosidade ou de acolhimento, porque é algo estreitamente vinculado ao processo da sobrevivência. Faz parte do comportamento da maioria das espécies, inclusive de muitas das que são tidas como irracionais pelos humanos. E a comida que se compartilha com alguém — por ser algo crucial para a manutenção da vida — jamais pode ser alegada. Porque isso transformaria a grandeza do gesto na pequenez da alma.
            E ao dizer isto, eu não posso deixar de me lembrar da minha bisavó Michol — pronuncia-se “Micol”, mesmo — avó materna da minha mãe, que é uma figura inesquecível de toda a sua descendência. Pelos que a conheceram e pelos que só ouviram contar suas histórias, comentários e reações, suas tiradas e repentes, sempre engraçadíssimos e mesmo sob as condições mais adversas. Pois lá na primeira metade do século passado, quando os brasileiros só conheciam os artistas que se destacavam no eixo Rio-São Paulo pelas ondas do rádio, o compositor Noel Rosa lançou uma música, que ainda hoje faz parte do repertório de alguns cantores e cantoras da MPB.
            A composição chama-se “Último desejo” e foi elaborada com o esmero e a inspiração que caracterizavam e caracterizam o repertório de Noel. Mas nos versos finais do poema que lhe servia de letra, o autor arrematou:
— Às pessoas que eu detesto, diga sempre que eu não presto, que o meu lar é o botequim; que eu arruinei sua vida, que eu não mereço a comida que você pagou prá mim...
            Era justamente nesse ponto que a vovó Michol entrava com um comentário indignado:
            — Gente, que mulher mesquinha! Está alegando até a comida que o homem comeu na casa dela?!
            E essa inusitada observação, feita três gerações antes da minha, é o que me leva a crer que a intolerância sempre experimentada por mim em relação às pessoas mesquinhas, talvez não seja, apenas, uma questão conceitual. Mais provável é que se trate de uma característica hereditária...

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