Crônica da semana-LEOA ADORMECIDA
Wagner Fontenelle Pessôa
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Eu havia completado os dezoito anos há
pouco tempo, quando tive o meu primeiro emprego formal. Ou quase isso. Na
verdade, não era propriamente um emprego. Era mais um trabalho, sem vínculo
empregatício e sem qualquer direito social, num órgão pertencente ao Ministério
da Saúde, remunerado contra recibo, ao final de cada mês. Isto é, se não
houvesse atraso no pagamento, o que, de resto, acontecia com bastante
frequência. Pense na estabilidade do jovem trabalhador!
Isso
ocorreu numa época em que a política do governo federal era a de não realizar
concursos e a administração pública preferia admitir seus servidores de forma
precária. Uma herança nefasta deixada ao país, em sua rápida passagem pela
presidência da República, um populista e alcoólatra chamado Jânio Quadros. Aquele
mesmo que, após uma série de ações espetaculosas, em oito meses de governo,
renunciou ao cargo, criando as condições favoráveis para a instalação do regime
militar de 1964, cerca de dois anos depois. Mas isso não vem ao caso de agora.
O
fato é que fui trabalhar no Departamento de Endemias Rurais, junto com mais um
grupo de rapazes e moças, admitidos nas mesmas condições de precariedade que
eu: sem direito a nada — exceto àquele cheque magro no final de cada mês — e
sem ser submetido a um processo seletivo, porque os concursos não eram
autorizados pelo governo e, nos casos especiais, a coisa era resolvida desse
jeito.
Mandaram-me
para o Setor de Comunicações, onde o menos que se fazia era cuidar das
comunicações. Na verdade, era uma espécie de Seção de Protocolo, por onde
transitavam os processos que chegavam e saíam daquele Departamento. A maioria
dos quais requerendo benefícios, férias, licença-prêmio, aposentadorias e — é
claro! — diferenças salariais. Porque, como sabem muitos, um dos princípios
básicos que norteiam o funcionamento da máquina estatal é: “todo funcionário
público que se preza, tem sempre uma diferença a receber”!
Mas,
voltando ao Setor de Comunicações para onde me mandaram, lá só havia duas servidoras,
além de mim. A primeira delas era dona Elza, a nossa chefe. Viúva e mãe de um
único filho, era nisso que consistia a sua razão de existir: o filho ainda
pequeno e o culto à memória do falecido. Era um amor de pessoa, dotada de uma
generosidade e paciência admiráveis, para com os subordinados e colegas. Dava
ordens com a delicadeza de quem pede e agradecia pela tarefa realizada, com a
entonação de quem recebera um favor.
A
segunda era Raimundinha. Solteira e já madura que, pelo pouco que cheguei a conhecer
de sua vida, cumpria uma rotina monótona de ir, de casa para o trabalho e do
trabalho para casa, onde residia com a mãe idosa e doente, única herança que
lhe deixara seu falecido pai. Ocupava o cargo de arquivista naquele Departamento,
mas o seu “arquivismo” (digamos assim) se limitava a manusear as centenas ou
milhares de fichas, que abarrotavam as gavetinhas dos vários arquivos, que
delineavam o campo de suas atribuições funcionais.
Essas
fichas correspondiam aos processos que transitavam pela repartição, indo e
voltando de um setor para o outro, de acordo com a natureza de cada um deles.
De tal sorte que todo dia e o dia todo, durante o expediente, sentada numa
cadeira com rodízios, a Raimundinha rolava de uma ponta à outra dos arquivos, localizando
a ficha correspondente a cada um daqueles processos empilhados sobre sua mesa.
Fazia nela as anotações de entrada ou saída, com o respectivo despacho e a
devolvia ao lugar de origem.
Foi
por isso que, numa tarde em que o meu serviço fora pouco — estando dona Elza ausente,
para comparecer a uma reunião — eu me encontrava enfadado, às três horas da
tarde, cumprindo um expediente que só terminaria quando o relógio da portaria
marcasse badalasse as 18 horas. Era tempo demais para a minha inquietude e eu
media a sala a passos, indo de uma extremidade à outra, quando me dei conta que
a Raimundinha, ao contrário, estava concentradíssima, de costas, com a cabeça
curvada sobre seus fichários e o pescoço à mostra. E, na falta de coisa melhor
para fazer, veio à minha cabeça a ideia de pregar-lhe um susto.
Ao
passar por trás dela, rocei os dedos pelo seu pescoço, bem de leve, esperando
que se assustasse ou que desse um grito, mas não que tivesse a reação que teve.
De um salto, a Raimundinha se levantou da cadeira, teve uma espécie de tremelique
e, sem se voltar para mim, reclamou, como se falasse consigo mesma:
—
Ai, meu Deus... Não desperta esta leoa adormecida!
A
leviandade dos meus dezoito anos não me possibilitara antever aquele resultado,
para a simples brincadeira que pretendi fazer com ela. Algum tempo depois, saí
daquele Departamento e fui trabalhar noutro lugar. Mas, por via das dúvidas,
nunca mais fiz nenhum movimento que pudesse perturbar o sono da leoa
adormecida.
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