Crônica da semana- NÃO RELINCHAVA POR MODÉSTIA!
Wagner Fontenelle Pessôa
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Que
me perdoem seus descendentes se, por acaso, esta crônica chegar ao conhecimento
de algum deles, o que espero não venha a ocorrer. Mas Seu Cruz foi uma das
pessoas mais grossas que já conheci em minha vida. Era uma espécie de chefe de
portaria e, ao mesmo tempo, coordenador de disciplina, numa escola onde
lecionei durante vários anos.
Muito respeitado pelos alunos e
considerado pelos colegas, notabilizou-se, porém, por uma grossura antológica que
resultou, ao aposentar-se, num verdadeiro folclore formado a partir da vasta e
inacreditável coletânea de situações que protagonizou, de suas reações inesperadas
e de manifestações absolutamente impensáveis, que marcaram a sua passagem por
aquela instituição.
A grossura dele, contudo, não provinha
de um mau gênio ou de uma natureza pouco sociável. Era apenas um sujeito tosco
e completamente sem noção, imprevisível naquilo que faria no momento seguinte,
em meio a uma conversa ou diante de um acontecimento qualquer, que considerasse
estar dentro de sua esfera de responsabilidade. Era atencioso com os colegas,
mas tratava as questões disciplinares dos alunos com absoluta intransigência.
No mais, tudo corria por conta da
sua conhecida e reconhecida grossura e falta de discernimento. Um dos colegas
professores da velha guarda, por exemplo, contou-me que certa vez comprara um
sapato muito macio e flexível, uma novidade naquele tempo. E que, feliz com o
conforto que o “pisante maneiro” lhe proporcionava — numa época que o solado de
couro dos calçados masculinos costumava ser sempre muito duro — comentou sobre
isso com o responsável pela portaria e lhe disse, com certo exagero:
— Olha aí, Cruz, comprei esse sapato
e estou maravilhado! É tão flexível, que você pode até dobrá-lo ao meio, para
colocar dentro da mala, quando for viajar...
E, no entusiasmo do elogio, tirou o
calçado de um pé e o entregou ao interlocutor, para que ele mesmo verificasse a
maciez do produto. Seu Cruz, com ares de quem precisa dar um veredicto sobre o
assunto, examinou-o por fora, olhou por dentro e, antes que o dono pudesse
esboçar qualquer reação, com a força que tinha nos braços e nas mãos, dobrou o
sapato em dois e rachou o solado ao meio. Em seguida, sem se dar conta da
estupidez que cometera, sentenciou, devolvendo ao boquiaberto proprietário
aquele pé de sapato:
— Você foi enganado, Roberto. Esse
sapato não tem essa resistência toda que lhe disseram. Olha aí...
Mas, nem só na brutalidade física se
evidenciava o quanto essa figura era tosca. Numa outra ocasião, depois de
algumas semanas de ausência, por conta de uma doença que acometera o seu marido
e de uma cirurgia a que o mesmo se submetera, uma professora retornava ao
trabalho e entrava pela manhã na escola, para as primeiras aulas do dia.
Todos sabiam que a professora se
ausentara em razão da enfermidade do marido, mas a maioria dos seus colegas não
conhecia maiores detalhes sobre o assunto. Foi então que, ao passar pela
portaria, a professora cumprimentou Seu Cruz e foi igualmente cumprimentada por
ele:
— Bom dia, professora. Como vai
passando o seu marido?
A colega agradeceu pelo interesse,
respondendo de maneira breve:
— Ainda “depauperado”, Seu Cruz, mas
está se recuperando aos poucos...
No entanto, como ele não conhecia o adjetivo
“depauperado”, quis saber mais e voltou a perguntar à docente, que preferiu
fingir que não ouvira segunda parte da indagação e “passou batida”, em direção
à sala dos professores, de onde o acontecido tomou o rumo da “rádio corredor”:
— Mas o que aconteceu, professora?
Foi fimose?!
Por melhor que tenha sido a sua
intenção, esse Seu Cruz, como se vê, não relinchava por modéstia!
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