Crônica da semana: SEJAMOS GENEROSOS, PELO MENOS...

Wagner Fontenelle Pessôa                               
Certa vez, conversando com uma colega de trabalho acerca das dificuldades de se encontrar a pessoa adequada para trabalhar em nossa casa — em quem possamos confiar e de quem seja possível esperar capricho e zelo com as nossas coisas — ouvi dela o seguinte:
            — É melhor ter uma doméstica bem “xucra”, a quem seja necessário ensinar e explicar algumas coisas várias vezes, do que uma muito sabida e esperta, que acabe nos trazendo dor de cabeça.
            Considerei que havia certo exagero nesse modo de colocar a questão e que o melhor seria, mesmo, termos nesse tipo de relação alguém que ficasse numa faixa intermediária. Nem tão tosca, como pretendia a minha colega e nem tão “esperta” que nos deixasse pouco à vontade, quando estivesse circulando por dentro de nossa casa. Mas, com o passar do tempo, sobretudo a partir de uma fase da vida em que tenho sido o exclusivo administrador das minhas rotinas e tarefas domésticas, eu me dei conta de que ela não estava completamente errada.
            Observando alguns casos ocorridos com esses trabalhadores domésticos, cheguei à conclusão de que, verdadeiramente, os mais simplórios são os que permanecem mais tempo no mesmo emprego e mantêm uma relação mais tranquila com seus patrões.
            A Madalena, por exemplo, foi uma empregada que tivemos em Natal. A cabocla era um “azougue”! Espertíssima, sabia de tudo e para tudo ela tinha uma explicação a dar, uma ideia a oferecer, uma resposta para qualquer pergunta... Resultado: depois de alguns meses lá em casa, quando fomos apurar os estoques da despensa, que parecia estar se esvaziando antes do tempo previsto, descobrimos que ela se fizera nossa sócia nas provisões. O que tinha de simpática tinha de desonesta. E essa é a tal esperteza que não vale a pena ter numa “secretária do lar”.
            Já a Francisca, que trabalhou durante anos seguidos na casa da mãe do meu amigo e irmão Pedro Luciano, era de uma honestidade inatacável! Tosca como poucas, viera do interior do Ceará — da cidade de Ibiapina, quase na divisa com o Piauí — para trabalhar em Fortaleza, a serviço de dona Núbia, Dr. Edmundo e os filhos.
            Era um “poço de ignorância”, mas muito engraçada! Pelas reações que manifestava e pelas coisas que dizia, diante dos fatos e circunstâncias que a surpreendiam ou daquilo que ela estava vendo pela primeira vez na cidade grande. Como viera de uma região serrana, a Francisca não conhecia o mar. Assim, na primeira oportunidade que surgiu, dona Núbia a levou a uma praia, para lhe proporcionar a ideia de como era aquilo. De frente para a imensidão do oceano, caminharam pela areia até onde morriam as ondas. Aí, depois de observar por muito tempo aquele movimento da maré, ela quebrou o silêncio com uma singela pergunta:
            — E esse “marzão” não sossega nunca?
            Pelo visto, ela deve ter imaginado que, em algum momento, aquela água toda iria estancar e se acalmar, daquele ir e vir interminável. De outra feita, tendo sido levada pela patroa a um dentista, depois de tomarem o elevador no térreo e dele saírem no andar onde ficava o consultório do profissional, a Francisca, que não percebera a mudança de um piso para o outro, manifestou a sua estranheza:
            — E o que nós “viemo” fazer nesse “quartinho”?
            Desses e outros casos, há bem mais que uma dúzia, todos evidenciando a sua completa falta de noção sobre algumas coisas. Agora, sem noção desse jeito, só mesmo o Seu Matias, uma espécie de “faz tudo”, que trabalha há décadas, no apartamento da Claudia, que é outra das minhas irmãs.
            O homem é de uma humildade comovente e da confiança absoluta dos patrões. Mas pensem num tipo tosco — o mais tosco que puderem — que esse é o Seu Matias. Também protagonista de uma coleção de episódios hilários e inacreditáveis. Como aquele em que estava limpando as vidraças do apartamento, no oitavo andar do edifício, quando chegou o meu cunhado e se assustou, ao ver que ele estava se pendurando por fora das janelas, sem a mínima garantia de segurança. E deu-lhe uma bronca:
            — Matias, você quer despencar daí e morrer?! Vá já buscar uma corda e se amarre, homem! Não me faça uma desgraça dessas!
            Dada a ordem, o dono da casa entrou para trocar de roupa e ao regressar, encontrou o Seu Matias — que retomara a sua faina de limpar as janelas — preso a uma corda. Com uma das pontas amarrada à grade da varanda e a outra, presa em volta do pescoço! O que significa que ele não compreendeu o espírito da coisa. Não se protegeu contra a morte, mas apenas optou morrer enforcado e não pela queda, caso despencasse daquela altura toda.
            Esse tipo de gente, por ser tão simples, mas tão correta, merece que tenhamos muita paciência com a sua ignorância. Ou que, diante da sua imensa burrice, sejamos generosos, pelo menos...


            

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