Crônica da semana/ AINDA NEM TERMINARA O MÊS DE MARÇO

Wagner Fontenelle Pessôa
Havia um personagem na novela “Roque Santeiro”, interpretado pelo ator Rui Rezende, que, embora fazendo um papel secundário, marcou a memória do público televisivo brasileiro, por bastante tempo. Era o professor Astromar Junqueira, que se caracterizava pelo gosto da fala empolada e pelo prazer dos discursos intermináveis.
            De fato, apesar das suspeitas que pesavam sobre o personagem — as de que, à meia-noite, ele se transformava num lobisomem — era essa obsessão que o definia: o seu desmedido apreço pelas palavras difíceis e pelo hábito de, sob qualquer pretexto, proferir um discurso, longo e pedante. Tanto é que, no genial enredo criado pelo autor Dias Gomes, o sorumbático professor acabava sendo acolhido como “orador oficial”, na imaginária cidade de Asa Branca, em que a trama se desenrolava.
            Embora o professor Astromar pareça apenas um produto da ficção, não é incomum encontrar-se, sobretudo em cidades de menor porte, alguns tipos assim como ele. Gente que se deleita em escrever discursos, sob qualquer desculpa, com a expectativa de poder pronunciá-los nas oportunidades que surgirem. Mas isso não chega a ser um problema.
            O problema é quando o orador habitual é convidado a falar em alguma ocasião e não tem o tempo necessário para preparar a sua fala. Porque pode ser que resolva adaptar algum dos textos que já tem em seus alfarrábios, para não perder a oportunidade de discursar e reafirmar a sua fama de orador. É aí que, às vezes, a coisa não funciona bem.
            Certa vez, por exemplo, estive num evento literário que tinha como tema o Natal e as lembranças natalinas de seus participantes. Mas um desses, tido como respeitado orador, na sua vez de falar, sacou do bolso um texto que se referia às lembranças de um casarão de sua família, que ele descrevia de forma alongada e um tanto maçante, da porta de entrada ao fundo do quintal, mencionando as brincadeiras infantis por seus quartos e corredores.
            A narrativa nada tinha a ver com a proposta daquele sarau, que seria a memória dos Natais já vividos pelos que dela participavam. E a embromação ficou perceptível, mas o autor da proeza, para justificar o seu texto — inteiramente fora do contexto — acrescentou ao final de sua leitura: “E foi nesse casarão que passei as melhores festas natalinas da minha infância...”. Francamente, fez um papel ridículo!
            Pois o meu pai costumava contar sobre um velho que morava em determinada cidade do interior, que também era tirado a falar em público. E esse velho tinha o hábito de escrever discursos sobre qualquer tema ou data comemorativa, desde que lhe viesse a necessária verve para isto. Do Ano Novo ao Dia das Mães, passando pela data da Padroeira e pela Semana da Pátria, “se a inspiração lhe desse pista, ele caía dentro” e preparava logo um texto, que lhe serviria para o discurso, na primeira ocasião que surgisse!
            Houve, porém, uma circunstância em que o “discurseiro” foi apanhado desprevenido. De forma mais ou menos imprevista passou pela cidade uma autoridade do Estado — coisa que não era comum naqueles tempos — e a Prefeitura Municipal teve de providenciar, às pressas, uma singela recepção para o político. Foram então procurar o velho orador, para que fizesse a saudação ao ilustre visitante, em nome da coletividade. Ele explicou que não tinha nenhum discurso preparado com esse propósito e nem teria tempo bastante para elaborar, tão rapidamente, um texto dessa responsabilidade. Foi quando um dos auxiliares do prefeito sugeriu:
            — Mas o senhor deve ter outros discursos prontos, com certeza. Tente fazer uma adaptação aí, por favor! O que nós não podemos é deixar de homenagear o homem!
            Sentindo-se importante, o orador disse que veria o que era possível fazer e, no momento certo, lá estava ele, todo enfatiotado e pronto para fazer a saudação oficial ao respeitável visitante. E tendo recebido a palavra para que o fizesse, assim começou:
            — Hoje o dia está tão bonito, o céu está tão azul, o sol brilha com tal intensidade, que só me lembra do 7 de setembro...
            Aí fez uma pausa e ignorando completamente o ilustre visitante, leu um discurso que retirara do fundo do baú, acerca do Dia da Interpendência:
            — O 7 de setembro é a data máxima da nacionalidade brasileira...

            E assim continuou até o fim, sem que a comitiva da autoridade homenageada entendesse patavinas sobre a razão de ser daquele alentado discurso sobre o dia da independência do Brasil. Principalmente, porque ainda nem terminara o mês de março.

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