Crônica da semana/ EU MESMO É QUE NÃO QUERIA COMER ESSA GALINHA...

Wagner Fontenelle Pessôa                       
A inveja é um sentimento nefasto, próprio dos espíritos inferiores, aos quais não incomoda, somente, o fato de serem pessoas desprovidas daquilo que o outro tem ou de não serem aquilo que o outro é. Aos invejosos o que maltrata, mais ainda, é que o outro seja como é, possua os méritos que possui ou tenha, sob o aspecto material, aquilo que ele, o invejoso, não tem.
            Há uma diferença muito sutil entre as duas situações, motivo pelo qual é preciso deixar isto um pouco mais claro. A pessoa invejosa não sofre, apenas, por não ser o que o outro é. Sofre, mais do que isto, porque gostaria que o outro não fosse daquele jeito ou não tivesse aquilo que tem... É, portanto, uma forma de sentir duplamente negativa.
            Em alguns casos, que não são poucos, a inveja produz reações tão desproporcionais, que atinge o patamar de uma desordem emocional grave, uma patologia que deveria ser cuidada por um profissional especializado no campo da Psicologia. Mas isso não acontece na maioria das vezes e essa gente continua a circular no meio dos outros, odiando a beleza, o valor e o sucesso alheios. Bem diferente disso, no entanto, é aquilo que se chama de “despeito”.
            O despeito é uma espécie de ressentimento, de curta duração e proporções bem menores, por algo que não se teve ou não se fez, enquanto os outros fizeram. Seria o caso, por exemplo, de não receber o convite para uma festa, enquanto alguns amigos do mesmo grupo foram convidados para o evento. Aquilo pode incomodar, no momento e por algum tempo, mas não fará com que o excluído da lista deseje a derrocada financeira dos anfitriões ou que os demais quebrem a perna.
            Além disso, enquanto o sentimento da inveja corrói o invejoso de forma silenciosa e dissimulada, o despeitado, em geral, acusa o golpe imediatamente! São reações do tipo: “Ainda bem que o meu convite não chegou! Eu não estava com nenhuma disposição para sair de casa ontem!” Ou, então: “Nossa, eu não tolero a comida deles; está sempre salgada ou insossa! A cozinheira dos Almeida é péssima no tempero!”.
            Tudo isso é despeito; não é inveja. Porque o despeitado não guarda, em sentido próprio, um rancor por quem lhe fez a desfeita ou por quem foi prestigiado e compareceu ao evento. E tem mais... Se, numa próxima oportunidade, for lembrado e convidado irá, mais do que satisfeito, ao jantar ou recepção dos Almeida.
            Pois foi justamente um caso de despeito, o que se deu com a minha bisavó Michol, mãe da mãe de minha mãe, que era uma criatura engraçadíssima, cheia de repentes e improvisos, quando instigada ou provocada por alguém da família, agregados ou conhecidos. E o fato aconteceu quando ela recebia a visita de uma pessoa que fora convidada para o casamento da filha de alguém que ambas conheciam.
            Uma festa nababesca, pela narrativa da visitante, que se esmerava ao contar os detalhes, sobretudo quanto à variedade e fartura de bebidas e comidas, preparadas para o deleite dos convivas. Dentre os quais — que fique evidenciado — não se encontrava a minha bisavó. Aí, a certa altura da descrição, a narradora, talvez exagerando nas informações e para mostrar que o pai da noiva não fizera economia nos gastos com a recepção, acentuou, abreviando a narrativa dos fatos:
            — Era comida para alimentar um batalhão! Na cozinha, a quantidade de carnes, aves e peixes era absurda! As cozinheiras iam só pegando as galinhas, torcendo o pescoço e jogando nas panelas!
            Foi a oportunidade que a vovó Michol precisava para menosprezar o fato de não haver sido convidada também. Fazendo uma cara de nojo, ela interrompeu a visitante, para dizer:
            — Credo! Eu mesmo é que não queria comer essa galinha com pena e tripa!
            Não prestou! Daí por diante, em nossa família, sempre que alguém queria menosprezar a fanfarronice de alguém, recorria ao incontestável argumento da vovó: “Eu mesmo é que não queria comer essa galinha com pena e tripa!”. E todos entendiam o significado daquela evidente manifestação de despeito.


            

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