Crônica da Semana- MEU FRANGO OLHANDO A PRIMAVERA...
Wagner Fontenelle Pessôa
|
Em
meados da década de 1960 o meu pai resolveu retornar ao Ceará, que era onde
estavam suas raízes e as de minha mãe também, depois de terem vivido uns 25
anos — um pouco mais, um pouco menos — aqui pela região sudeste, período em que
tiveram seus quatro filhos. A maior parte desse tempo fora passada em Cachoeiro
de Itapemirim, cidade onde eu nasci e me criei até a entrada da adolescência, quando,
por razões de família e de trabalho, deu-se a nossa mudança para Fortaleza.
Para nós foi mesmo uma grande
mudança, de moradia e em nossa convivência social. Porque somente a partir
dessa transferência, foi que passamos a ter uma convivência cotidiana com nossos
tios e primos. E, por outro lado, tivemos que criar um novo círculo de amigos,
condição essencial em nossa adaptação a esse ciclo de vida que estávamos
inaugurando. Mas, sendo os cearenses uma gente muito sociável e receptiva, o
meu irmão e eu logo estabelecemos um relacionamento com rapazes e moças que residiam
por perto de onde fomos morar.
Passamos a conviver com alguns deles
e a frequentar a casa de umas meninas que estavam nessa vizinhança também. E
como ainda era o tempo das serenatas, o violão, que andava sempre com a gente,
ajudava bastante no estabelecimento desses novos elos, que foram a nossa porta
de entrada para o processo de assimilação dessas novas circunstâncias de vida. E
na casa dessas “preciosas”, lá na varanda onde sempre nos reuníamos, a
propósito de uma cantoria animada — eu, abraçando o violão e o Fernando abraçando
quem lhe desse cabimento para tanto — foi que conheci o primeiro imbecil na
capital do Ceará.
Era
um tipo metido a “riquinho”, que chegava acelerando o carro do pai, com o
evidente propósito de chamar a atenção da turma para a sua entrada triunfal. Nada
além de um Gordini, mas que, naqueles tempos, era considerado uma “tetéia”
entre os jovens daquela geração. Entrava na conversa falando mais do que todo
mundo e, não poucas vezes, atrapalhando a cantoria da turma, para opinar sobre
alguma coisa que só parecia interessar a ele próprio.
No
final do ano anterior, o Roberto Carlos, então no topo das paradas, havia
gravado uma música de conhecido compositor da minha terra, que viria a ser um
dos maiores sucessos de sua carreira: “Meu pequeno Cachoeiro”, que é hoje o hino
oficial da cidade. Era uma melodia que nos acostumáramos a ouvir pelas ondas da
Rádio Cachoeiro, desde a sua primeira gravação, feita pelo próprio autor. Mas
que havia tido, até então, apenas uma divulgação mais local. E só quando o
chamado “rei da juventude” resolveu gravá-la, é que o sucesso foi instantâneo e
nacional.
Pois estávamos justamente na casa das meninas, começando a cantar essa música,
cuja letra — de comprida que é — pouca gente já conseguira aprender até aquele
momento. Foi quando chegou o idiota do Gordini, que, atalhando o coro que se
aventurava pelos versos da canção, manifestou sua opinião sobre ela, que
ninguém lhe pedira, aliás:
— Acho essa uma das melhores
composições do Roberto Carlos! E adoro aquela parte em que ele diz: “Meu frango
olhando a primavera, que bonito que ele era dando sombra no quintal”!
Olhei para ele, querendo ter a certeza
de que não estava fazendo uma piada. Não estava! E então eu lhe expliquei que a
música não era do Roberto Carlos; era do Raul Sampaio. E completei:
— Além disso, não existe esse verso
que você falou. O correto é: “Meu flamboyant
na primavera, que bonito que ele era...”.
Mas o tipo não se deu por achado.
Insistia em que o verso seria “meu frango olhando a primavera” e ainda me
desafiou dizendo que já comprara o disco e querendo saber se eu também tinha a
gravação para conferir a letra. Foi quando expliquei que eu não precisava do
disco, porque conhecia essa música muito antes do Roberto gravá-la. E
acrescentei, para melhor esclarecimento daquele “jegue sem mãe”:
—
O flamboyant é uma árvore que se encontrava com muita frequência na Região Sudeste
do Brasil. Inclusive em Cachoeiro de Itapemirim. E na primavera, quando estão
floridos, os flamboyants são um espetáculo da natureza!
Ele
se calou, mas não chegou a admitir o erro. E eu guardei desse episódio, além da
lembrança, uma dúvida e uma certeza. A dúvida é se, alguma vez antes daquela,
ele já ouvira falar num flamboyant. E
a certeza foi a de que ele não possuía qualquer sensibilidade poética. Afinal
de contas, quem haveria de encontrar algum lirismo na imagem de um frango
olhando a primavera? Só mesmo aquele estúpido!
Nenhum comentário
Postar um comentário