Crônica da Semana/ COMO SE FOSSE UM LORDE BRITÂNICO
Wagner Fontenelle Pessôa |
Num bairro em que morei
durante muitos anos, havia, bem próximo à minha residência, um bar que
frequentei por muito tempo. Não só para encontrar alguns amigos e colegas de
trabalho que também apareciam por lá, como por conta de uma turma que ali se
reunia — munida de violão, cavaquinho, atabaque e pandeiro — pelo gosto puro e
simples de tocar e cantar. Alguns tocavam mais no copo do que no instrumento;
mas no meu caso particular, que nunca fui um grande bebedor, o foco ficava
mesmo no violão e nos tira-gostos, que eram a especialidade da casa.
O estabelecimento, que não existe mais, era o “Tony´s
Bar”. Um nome que sempre considerei despropositado, visto que o seu dono
recebera, na pia batismal, o nome de Fernando. Mas isto é só um detalhe, que
não vem ao caso agora.
Além dos amigos e conhecidos, o bar também era
frequentado, com bastante assiduidade, por alguns pinguços que moravam no
próprio bairro. Uns que eram muito divertidos e que mais engraçados ficavam, na
medida em que iam esvaziando seus copos e derrubando suas doses. Outros que
eram chatos, inconvenientes mesmo, como há em todo e qualquer botequim. Mas
esses, como sabem os que circulam por esses ambientes, acabam sendo isolados pelos
demais fregueses. Ou postos para fora pelo próprio dono do lugar, a toque de
cabo de vassoura.
No entanto, havia um freguês do “Tony´s” que merece um
destaque especial. Não era chato e nem se caracterizava por ser um desses
bêbados divertidos, que ficam dizendo asnices e fazem rir ao demais. Era
engraçado, sim, mas por ser um pé-de-cana meticuloso e fleumático. Trabalhava
numa repartição pública e todos os dias, de segunda a sexta-feira, cumpria
religiosamente a mesma rotina, quando retornava do trabalho, lá pelo final da
tarde. Aos sábados e domingos também. Mas aí, o percurso era outro: saia de
casa e voltava para casa.
Ele jamais bebia em qualquer das mesas do bar. Sentava-se
num banco alto e estendia sobre o balcão o guardanapo de um tecido xadrez, azul
e branco (que já era reservado para ele). Em seguida, com a postura de um
lorde, sem que precisasse pedir nada, era servido e consumia, lentamente, três
doses de Campari e duas cervejas bem geladas. Nem mais, nem menos. Após,
apanhava um litro de leite no freezer, pagava a conta e retomava o seu caminho,
para chegar à casa.
Era fácil perceber, depois desse ritual diário, que Seu
Darcílio estava com o caminhar alterado, pela mistura da “destilada” com a
“fermentada”. Mas ele não perdia a pose. Apenas andava com as pernas meio
separadas, para facilitar o equilíbrio, olhar fixo para frente e num ponto
indeterminado, como se conhecesse aquele trajeto de memória e não precisasse
conferir o chão em que estava pisando.
Mas houve um dia em que o tempo fechou e o céu abriu
todas as suas torneiras de uma vez, como se Deus houvesse resolvido, de
improviso, mandar um segundo dilúvio sobre a terra. Desabou sobre a cidade uma
chuva tão intensa e tão repentina que, quando os moradores do bairro
perceberam, a água já transformara as ruas em rios e invadira muitas de suas
casas, causando susto, transtorno e prejuízo para um monte de gente.
O temporal caiu por volta de umas três da tarde e não
durou mais do que hora e meia para causar esse estrago todo. De tal forma que,
no horário de sempre, retornando do trabalho com a água pela altura da canela,
chegou Seu Darcílio ao “Tony´s Bar”, que ainda estava com quase um palmo de
alagado na parte mais alta de suas instalações. Contudo, aquilo era como se não
fosse com ele. Com as calças molhadas até a altura dos joelhos, puxou o banco
alto para junto do balcão, estendeu o guardanapo xadrez sobre ele e consumiu,
sem fazer um único comentário sobre o estado das coisas, três doses de Campari
e duas cervejas, como se não houvesse caído uma única gota de chuva naquele
dia.
Eu também estava lá, como outras tantas pessoas. Não para
beber ou por qualquer outro motivo, mas, tão somente, para esperar que a água
baixasse um pouco e me permitisse chegar até a minha moradia. Foi por isto que
presenciei quando Seu Darcílio completou o ritual de sempre. Terminou de
consumir as bebidas costumeiras, apanhou um litro de leite no freezer, pagou
sua conta e saiu caminhando na direção de casa, com as pernas meio abertas,
para manter o equilíbrio.
Não foram mais que uns vinte passos... Deu uma topada em
qualquer coisa que estava ao chão — e que não devia ser pequena — encoberta
pela água acumulada na rua, perdeu o equilíbrio e caiu reto, como uma árvore,
derrubada pelo lenhador. E ao se levantar, já vinha sem o litro de leite, que
perdera no meio daquela água barrenta. O “Tony´s” inteiro explodiu numa
gargalhada estrondosa, porque a cena fora hilária mesmo!
Seu Darcílio não teve nenhuma reação aparente, nem
retornou ao bar para comprar outro litro de leite. Levantou-se, completamente
encharcado, e prosseguiu sua caminhada para casa sem, sequer, olhar para trás.
E no dia seguinte, ao voltar do trabalho, lá estava ele sentado no banco alto,
com o guardanapo xadrez fazendo as vezes de toalha sobre o balcão, tomando suas
três doses de Campari e suas duas cervejas geladas.
De
diferente, mesmo, só o fato de que num dos pés ele não usava sapato. Usava uma
sandália de borracha, que era só como poderia acomodar aquele dedão inchado e
grosso de tanta gaze. Com tanta fleuma, como se fosse um lorde britânico!
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