Crônica da semana - PARAFRASEANDO DRUMMOND
Wagner Fontenelle Pessôa |
De repente, parecia que tudo estava dando errado na vida de Mauro: os
negócios não andavam bem, a loja estava quase falindo, o filho se comportava
mal no colégio. E o pior de tudo era que a mulher parecia não se importar com
nada disso. Aliás, a mulher era um capítulo à parte na problemática do infeliz!
Ultimamente ela andava arredia, queixando-se mais de dor de cabeça do que é
comum nas mulheres. Ele ficava exasperado: sem dinheiro, devendo mais do que
podia pagar, o filho fugindo ao controle e ainda, para piorar as coisas, sem
sexo. Estava ruim demais!
O
grande sonho de Mauro era ser poeta. Tinha a maior vontade de saber escrever
poesia, mas o que lhe faltava, era jeito para isto. Nutria uma discreta inveja
do vizinho, que gostava de escrever uns versos e se comprazia em lhe mostrar,
de vez em quando, os poemas que compunha, cada qual mais rebuscado do que o
outro. E ainda se gabava:
—
Cara... Mulher não resiste a um poema de amor feito prá ela! Começa a compor
umas coisas aí, que, daqui a pouco, você pega até a filha do prefeito!
Mauro ria do jeito do outro falar, mas no íntimo, aquilo instigava o seu sonho de ser poeta, de escrever coisas de amor e sensibilizar as mulheres, a começar pela sua própria. Mas se desculpava, assim como quem pede ajuda, dizendo ao vizinho:
Mauro ria do jeito do outro falar, mas no íntimo, aquilo instigava o seu sonho de ser poeta, de escrever coisas de amor e sensibilizar as mulheres, a começar pela sua própria. Mas se desculpava, assim como quem pede ajuda, dizendo ao vizinho:
—
Olha, eu gostaria muito mesmo! Mas não tenho inspiração para isto...
—
Que inspiração, homem de Deus? A inspiração vem depois! Você precisa é ler uns
autores aí, uns poetas desses de boa qualidade e vai observando como é que eles
desenvolvem o tema. No início, você tenta seguir as pegadas deles. Aqui e ali
copia uma ideia, um meio verso, para arrematar o seu... Depois, você pega o
ritmo e deslancha! Mas não vá me fazer plágio, que isso dá cadeia! É só para
pegar a ideia, viu?
Mauro ficou interessado na sugestão e, assim, como quem não quer nada — mas querendo — perguntou ao vizinho:
Mauro ficou interessado na sugestão e, assim, como quem não quer nada — mas querendo — perguntou ao vizinho:
—
E que autor você sugere, pra começar?
—
Ah, pega o Drummond... O Carlos Drummond de Andrade, que ele é versátil,
escreve poesias bem variadas e você tem mais opções. Bem, agora, me dá licença,
que estou tendo uma ideia aqui e quero passar logo para o papel...
O vizinho se foi de portão adentro, enquanto Mauro corria para anotar o poeta sugerido pelo outro, antes que se esquecesse do nome completo. No dia seguinte, tratou logo de procurar uma livraria e comprou uma Antologia Poética do vate de Itabira. Não quis levar prá casa, porque o que queria era escrever um poema bonito, para presentear a mulher.
O vizinho se foi de portão adentro, enquanto Mauro corria para anotar o poeta sugerido pelo outro, antes que se esquecesse do nome completo. No dia seguinte, tratou logo de procurar uma livraria e comprou uma Antologia Poética do vate de Itabira. Não quis levar prá casa, porque o que queria era escrever um poema bonito, para presentear a mulher.
Passou
a ler Drummond, sempre que o movimento estava fraco na loja, o que era quase
todo dia. De quando em vez consultava o vizinho sobre algum termo e insistia em
saber se esse negócio de copiar alguma frase ou aproveitar um pedaço de verso
podia ser mesmo feito.
Mais
uma vez o vizinho lhe disse que sim, desde que não exagerasse no aproveitamento
das ideias ou versos. E acabou lhe explicando:
—
Olha, você aproveita a ideia de um autor e diz a mesma coisa com outras
palavras, Isto é o que se chama de parafrasear. E é uma coisa permitida!
Entendeu?
Mauro
disse que sim e passou, a partir daquele dia, a tentar redigir o seu primeiro
poema, aproveitando, na medida do possível, alguma ideia de Drummond, que era a
sua leitura diária. E afeiçoou-se, particularmente a uns versos do autor,
intitulado “Poema de sete faces”, que começava assim:
“Quando nasci, um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse:
Vai, Carlos! Ser gauche na vida...”
E
numa tarde em que o movimento da loja estava absolutamente parado, resolveu ir
mais cedo para casa. Fechou a loja e se foi, chegando à sua residência num
horário em que o menino ainda estaria no colégio.
Entrou
quietinho, evitando provocar qualquer ruído, para fazer uma surpresa à mulher e
imaginando que, talvez, a sua chegada inesperada e num horário fora do
habitual, criasse um clima diferente, para um folguedo fora dos planos. Mas, já
no corredor, ouviu uns barulhos estranhos vindos do quarto: uma mistura de
gemido com cama rangendo. Sem querer acreditar que fosse verdade aquilo que
presumiu de imediato, caminhou com cautela redobrada até a porta entreaberta da
suíte do casal e, num relance, entendeu tudo.
Refestelando-se
com a sua mulher que, claramente, não estava sentindo nenhuma dor de cabeça,
ninguém menos do que o seu vizinho poeta! Aquele mesmo que lhe dissera, um dia,
que com um bom poema de amor feito para ela, pega-se qualquer mulher. Até a
filha do prefeito!
Sem
saber que atitude tomar — e antes que fosse visto — voltou na mesma pisada e,
saindo de portão afora, tomou o caminho da loja outra vez. Onde se trancou
sozinho, remoendo em seus pensamentos a cena de pouco antes. Pensou em mil coisas
a fazer e a todas se opôs logo em seguida, por entender que não seria o
encaminhamento adequado para a questão.
Até
que, depois de algum tempo, mais calmo embora ainda sem ânimo ou coragem de
encarar a mulher, que o traía com o vizinho, apanhou uma folha de papel e,
finalmente, redigiu o seu primeiro poema, parafraseando
Drummond:
“Quando nasci, um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai, Mauro! Ser CORNO na
vida.”
Não
chegava a ser uma composição admirável. Mas, de qualquer forma, já era algum
começo...
Nota do autor: A palavra “gauche”, contida nos versos de Drummond vem do Francês e se traduz
como “esquerda”. No contexto, porém, segundo
o próprio poeta itabirano, tem o propósito de significar “diferente”.
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