Crônica da Semana - PERMANECI NA INÉRCIA!
Quando
eu morei e estudei na cidade de Natal, ainda adolescente e cursando o que se
conhece hoje como o ensino médio (mas que, naquela época, era chamado de curso
Colegial) tive como contemporâneo uma figura engraçadíssima, que fazia parte de
um grupo mais chegado de colegas, embora não fizesse o mesmo curso que eu.
Naquele tempo, a estrutura do ensino
era mais simplificada e posso dizer, sem medo de errar, que era mais eficiente
também. Havia o curso primário (com quatro ou cinco séries) e depois, mediante
um exame de admissão, os que lograssem a melhor classificação obtinham vagas
para cursarem o ginásio. Este, com quatro séries, que equivaliam ao segundo
segmento da educação básica de agora.
Importante ressaltar que todos os
alunos participantes desse processo seletivo eram oriundos do mesmo ensino
primário, público e gratuito. Todos eram submetidos a ele em idênticas
condições, sem essa conversa de regime de cotas. E, na sequência do curso
ginasial é que vinha o ciclo colegial, distribuído em currículos diferenciados,
de acordo com aquilo que o estudante pretendesse fazer, depois de concluí-lo.
Havia o Científico, o Normal, o técnico em Contabilidade e o técnico na área
Industrial. Para os que queriam enveredar pela área das ciências Humanas,
Jurídicas ou Sociais, havia o curso colegial Clássico.
Foi este o curso que escolhi, um
pouco contra a vontade do meu pai, que preferia ver o filho engenheiro a vê-lo
advogado. Desse modo, por umas questões paralelas, acabei indo morar em Natal,
matriculado num estabelecimento do qual ainda guardo uma saudosa lembrança. O
Atheneu Norte Riograndense foi onde iniciei o meu curso Clássico. E por lá
também conheci uns tipos que ficaram marcados na minha memória: alguns
professores, alunos do meu e de cursos diferentes, a exemplo do Mozart, que era
um aluno do Científico.
Ele possuía um jeito diferente de
falar e de construir as frases, que, pela excessiva utilização de termos
técnicos, mais pareciam retiradas de algum livro de Física. E mesmo quando
dizia coisas “comuns” tinha uma forma peculiar de articular as palavras, com os
dentes da arcada superior mordendo o lábio inferior. Era uma figura realmente
extravagante, que quando conheci, imaginei estar fazendo graça, ao falar
daquele jeito. Aos poucos, porém, percebi que não se tratava disso. Era
esquisitão mesmo, embora fosse uma pessoa muito inteligente!
Também tínhamos um colega do curso
Clássico, que era filho de um advogado engajado na esquerda. E o Juliano — era
esse o nome da fera — assumia ares de intelectual esquerdista, ainda que, de
intelectual mesmo ele só tivesse a pose. Desenvolvera o hábito de alisar uma
meia dúzia de fiapos que deixara crescer, no rosto adolescente, coberto de
acne. Um projeto de barbicha que lhe caía absolutamente ridículo pela falta de
pelos no rosto, embora devesse achar que aquilo ajudava a compor a figura de
revolucionário que pretendia encarnar.
Pois, certa vez, estava o Juliano
sentado na mureta do segundo andar do Atheneu, cofiando a barbicha rala, quando
chegou o Mozart e fez aquela conhecida brincadeira, de fingir que se vai
empurrar o outro, para segurá-lo em seguida. O projeto de “comuna” tomou aquele
susto, mas recompôs-se rapidamente e disse num tom de voz que pretendia parecer
inabalado: “Se eu cair daqui, você vai se lascar...”.
O Mozart olhou bem para ele, depois
olhou lá para baixo, tornou a olhar para o cara e respondeu, mordendo o lábio
inferior, com aquela expressão de espanto:
—
Eu tenho a impressão de que, se cair daqui, quem se lasca é você!
A risadaria foi geral e só quem não
riu foi o próprio Juliano. Mas acho que isso se deve ao fato de ser a esquerda
sempre muito mal humorada!
A única coisa que fazia com que o
Mozart parecesse um adolescente normal era a sua perdida paixão por uma das
alunas da Escola Doméstica de Natal, que era, então, um modelo de ensino para a
formação de futuras esposas e mães de família. Mas isso é um capítulo à parte.
E essa paixão, da qual todos os seus colegas mais chegados sabiam, era apenas
platônica e unilateral. Porque disso, a menina certamente nunca soube.
Além
do que, sendo a moça muito linda e pertencendo a uma família abastada, isso
reduzia ás chances do pobre rapaz a quase zero! Se alguma vez ela pôs os olhos
nele, há de ter sido numa determinada missa, que havia aos domingos e à qual
comparecia um grande número de adolescentes. Isso porque o padre responsável
por ela adotara uma liturgia um tanto ousada para aquela época, introduzindo
guitarras, violões e bateria, para acompanhar a celebração. Uma forma
inteligente de atrair essa parcela do rebanho.
A maior parte da nossa turma
frequentava a tal missa. Não motivada pelo fervor religioso, mas pela
possibilidade e oportunidade de estabelecer contato com as meninas de outros
colégios, numa época em que ainda não havia internet, FaceBook ou Whatsapp. E
foi saindo de uma missa dessas que nos encontramos com a tal menina, a paixão
do Mozart, acompanhada por outro rapaz, com aspecto e estilo bem melhores que o
dele.
Instantaneamente, todos olharam em
sua direção, como a especular que reação ele teria, diante daquele golpe
imprevisto em suas esperanças, por mais remotas que elas fossem. Mas ele não
esboçou, quanto a isso, reação alguma. Olhando para frente, continuou a
caminhar conosco, como sempre caminhávamos, lado a lado, ocupando toda a
calçada. Até que alguém cometeu a maldade de espetá-lo com o assunto: “E aí,
Mozart, sentiu alguma coisa diferente?”.
Com a fisionomia impávida e no seu
estilo comum de dizer as coisas, ele respondeu como se sua fala fosse retirada
de algum livro de ciências:
— Não modifiquei as minhas condições
normais de temperatura e pressão: permaneci na inércia!
Sinceramente, poucas vezes na vida
eu presenciei alguém amargar uma frustração amorosa com tanta altivez e de
forma tão técnica!
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