Crônica da semana - EU SOU DO GOVERNADOR!



Foi aí pelos idos de 1964 ou 1965, quando ocupava o Palácio das Laranjeiras o governador Carlos Lacerda, do então Estado da Guanabara, que se deu o episódio que pretendo narrar. A Guanabara, para quem não se lembra bem, foi um estado brasileiro que teve curta duração: existiu de 1960 a 1975, no território do atual município do Rio de Janeiro, que, anteriormente, correspondera ao Distrito Federal, onde se localizava a capital da República.

            Naqueles bons tempos, de menos estresse para a população, com pouco ou quase nenhum congestionamento no trânsito e de violência urbana apenas pontual, viver em cidades de maior porte, como o Rio, por exemplo, era muito mais tranquilo e muito mais divertido. Ainda não havia o metrô, mas as pessoas se locomoviam de ônibus ou de lotação, dependendo da pressa e de quererem maior ou menor emoção no trajeto.
            A emoção ficava por conta dos motoristas de lotação, que eram uns micro-ônibus, sem a figura do trocador, nos quais a passagem era paga diretamente ao motorista, no momento do embarque. Depois você se sentava, agarrando-se ao encosto do banco da frente e começava a rezar. Porque os motoristas de lotação eram quase folclóricos por sua imprudência! Pareciam uns loucos, afundando o pé no acelerador e fazendo as curvas a toda velocidade.
            A parte boa é que aquelas viagens também se prestavam a desopilar o fígado de qualquer um, porque os cariocas, muito bem humorados, diziam coisas divertidas, a cada freada ou curva de mau jeito, achincalhando o motorista, que, não poucas vezes, também devolvia o desaforo. E todo o coletivo caía na risada.
            Aquele bate-boca diário — que ficava mais no campo do deboche e da ironia, do que no da agressão verbal — ajudava a desanuviar as tensões do dia de trabalho que iria começar ou que estava terminando. Mas, em nenhum momento, se transformava num episódio de violência. Com raras exceções, para justificar a regra.  
            Nessa época, os bondes já haviam praticamente desaparecido. E as poucas linhas que ainda restavam, mais serviam para o passeio dos turistas do que ao transporte da população. Para os que vinham dos subúrbios ou da Zona Norte, a questão era bem mais complicada: os trens da Central do Brasil.
            No entanto, quem quisesse ir da Praça Saens Peña (na Tijuca), passando pelo Centro, até a Zona Sul do Rio, sem muita pressa, a melhor opção eram os ônibus elétricos. Chamados de “tróileibus” (do inglês, trolley bus), trafegavam conectados por duas hastes, ligadas a cabos estendidos ao longo do seu percurso.
            Eram silenciosos, embora um pouco lentos, mas circulavam sob uma regulamentação específica, para não perturbarem o trânsito dos demais veículos. Inclusive quanto aos pontos de parada, para não atrapalharem o movimento dos ônibus comuns e lotações. Pois foi num “tróileibus” desses, indo de Copacabana para o Centro, que certa vez, deu-se um fato inusitado. Uma coroa, mais para “bem passada” do que “ao ponto”, tomou o ônibus num ponto próximo ao Palácio das Laranjeiras e pegou-se de conversa com outra que, pelo uniforme de ambas, devia ser uma colega de trabalho.
            E tanto falaram e se entretiveram com aquela conversa fiada, que acabaram perdendo o ponto onde deveriam desembarcar. Aí, a distraída resolveu acionar aquela campainha de parada, que o motorista certamente ouviu, mas não atendeu, porque não lhe era permitido parar fora do ponto. E quanto mais a coroa insistia em tocar a campainha, menos o motorista parecia disposto a atendê-la. Com certeza, estava irritado com aquele sinal sonoro na sua orelha, como também estavam os demais passageiros, com a impertinência da “baranga”.
            Então, quando o coletivo finalmente fez uma parada no próximo ponto de seu trajeto — e bem distante do anterior — a mulher, bufando de raiva, resolveu desacatar o motorista:
            — Você não me ouviu tocar a campainha?! Eu perdi o ponto onde deveria descer e você não atendeu ao meu pedido para parar! Isso é um desrespeito! Eu trabalho no Palácio e exijo um mínimo de consideração num transporte coletivo...
            E a passageira prosseguiu na cantilena, mesmo após o condutor esclarecer que ele não podia parar fora dos pontos certos. Apesar disso, ela não se calava e nem aplacava a sua ira. Continuava a discursar, como se o motorista houvesse violado algum direito seu, enquanto os demais passageiros esperavam que ela terminasse o seu discurso indignado, para prosseguirem a viagem. Foi quando ela — provavelmente querendo dizer que trabalhava no palácio do governo — resolveu dar uma carteirada final no paciente chofer do veículo:
            — Mas fique sabendo que isso não vai ficar assim! Porque eu sou do governador! Eu sou do governador, está ouvindo?!
            Só então o motorista, que até ali recebera calado a descompostura que não merecia, deu um muchocho e respondeu:
            — Hum... Como se o governador quisesse essa porcaria!
            Foi aplaudido com entusiasmo pelos demais passageiros, irritados com a demora e com aquela quizomba sem razão de ser, criada pela “barnabé” estadual, que agora se dizia patrimônio pessoal do governador Carlos Lacerda. Como se o governador, de fato, pudesse ter algum interesse naquela mocreia, que era uma coisa mais feia do que bater na própria mãe!
           


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