Crônica da semana/ UMA COINCIDÊNCIA INFELIZ
Quando, há quase duas
décadas, a “guerra fiscal” entre os estados brasileiros atingiu o seu nível
máximo — fazendo com que alguns deles, descaradamente, oferecessem vantagens
tributárias, para atrair empresas em funcionamento noutras unidades federativas
— a competição pelo aumento da arrecadação espraiou-se por outras áreas também.
Como, por exemplo, a do famigerado IPVA, que havia sido absurdamente aumentado
por alguns governadores estaduais.
Em São Paulo, por esta razão, nas proximidades da divisa
com o Paraná, muita gente passou a licenciar seus carros no estado vizinho, no
qual a alíquota desse imposto custava algo como 50% daquilo que o proprietário
do veículo teria de pagar ao estado paulista. E no Rio de Janeiro, pelo mesmo
motivo, o licenciamento foi drenado para Minas Gerais e Espírito Santo, de
acordo com a região em que morassem os contribuintes fluminenses sujeitos ao
tributo.
Quando as Secretarias de Fazenda, daqueles estados que
perdiam essa arrecadação, perceberam o que estava ocorrendo, acionaram suas
procuradorias, que ensaiaram uma campanha contra os proprietários dos veículos
licenciados nos estados vizinhos, sob a frágil alegação de uma pretensa “evasão
de divisas” ou de “falsidade ideológica”. Sobretudo nas cidades fronteiriças a
esses outros estados.
A
campanha, movida com esse propósito — em determinadas operações e interpelações
da polícia e das guardas municipais — atingiu o nível do “abuso de autoridade”.
Inclusive, com o respaldo de alguns membros do Ministério Público. Mas a
pressão não foi suficiente para impedir o funcionamento dessa criativa fórmula,
para escapar à extorsão fiscal de alguns governos, porque não há lei que
obrigue o dono de um veículo de emplacá-lo no município em que tenha o seu
principal domicílio. Basta que se tenha um endereço, uma residência ou moradia numa
cidade, ainda que temporária, para licenciar o carro de sua propriedade na
mesma.
Muitas
vezes, porém, para resolver a parte que diz respeito ao endereço dos
proprietários, os despachantes indicam o seu próprio endereço, como residência
do cliente. E é por isto que, em lugares como aquele onde moro, veem-se mais
carros de algumas cidades do Espírito Santo do que, certamente, deve ser o
número de veículos que circulam nesses municípios.
Como, no entanto, “o que dá prá rir, também dá prá
chorar”, conheço um caso, pelo menos, em que a esperteza não deu certo. E tudo
por culpa de uma colisão entre dois veículos, que bem poderia ter sido
encerrada, com um acordo simples, firmado ali mesmo e rapidamente, se os
motoristas não se mostrassem tão impertinentes, arrogantes e intransigentes.
Foi mesmo na cidade em que resido, Campos dos Goytacazes,
no norte do Estado do Rio de Janeiro. Num horário de trânsito intenso, aquele
que mistura a saída dos colégios com a necessidade de chegar a casa para o
almoço, dois carros se envolveram numa leve colisão, num cruzamento de ruas do
Centro. Os motoristas — uma senhora emproada e um cavalheiro com cara e jeito
de profissional liberal — saíram para avaliar os respectivos prejuízos. E
partiram, desde logo, para responsabilizar, um ao outro, pelo acidente de
pequena monta.
Ambos insistiam em eximir-se de culpa, afirmando que o
outro teria sido o causador do acidente e querendo ser indenizado pelo prejuízo.
De forma ríspida e falando alto, ao mesmo tempo em que o trânsito na esquina se
complicava, porque seus carros ocupavam, pelo menos, meia pista. E enquanto o
homem exibia sua carteira de “alguma coisa” para a mulher, esta fazia o que se espera
da maioria das mulheres num caso desses: telefonava para o marido, pedindo sua
ajuda.
Só que, antes que o marido dela chegasse, quem chegou foi
a polícia, mandando que os motoristas reposicionassem seus carros numa lateral
da rua para não complicar mais o trânsito. E, em seguida, os policiais passaram
àqueles procedimentos intermináveis, que começam com o recolhimento da
documentação dos veículos e das carteiras de habilitação dos condutores.
Depois, veio aquele “olha prá cá, anota prá lá”, aquele
questionário aos envolvidos no assunto, aquele registro que parece não ter fim
e que só pode ser uma vingança dos policiais contra quem os importunou no meio
de um expediente, que parecia ir caminhando bem.
Até que, em certo momento, o policial que fazia as
anotações comentou com os dois, que continuavam a discutir:
— Vocês devem brigar muito em casa, né?
A mulher indignou-se:
— Como assim?! Eu nunca vi esse senhor na minha vida! E
nem quero vê-lo mais!
— O mesmo digo eu! Foi a reação do outro motorista.
O PM fez um ar de riso e respondeu, dando uma “decisão”
nos dois:
— Isso não é possível... Vocês residem na mesma cidade e
no mesmo endereço. Já devem se conhecer bastante!
Disse e provou, deixando os dois sem reação. Porque, da
documentação de ambos os veículos, constava o mesmo endereço (rua, número e
bairro), na cidade de Piúma, Estado Espírito Santo. Onde, obviamente, nenhum
deles residia. Quem residia lá era o despachante, que prestara o mesmo serviço,
para um e para outro.
E
a isto é que se pode chamar de uma coincidência infeliz!
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