Crônica da Semana - APENAS FANTASIA

 Uma pergunta que eu me faço, de vez em quando, sem jamais encontrar uma resposta que me pareça satisfatória, é: até que ponto os sonhos devem ser sonhados? Não me refiro àqueles sonhos que sonhamos dormindo, produto de nossas vontades subconscientes, das nossas frustrações, das necessidades do nosso corpo, das nossas fantasias ou de tudo isto misturado. Eu me refiro aos sonhos que sonhamos acordados, dos nossos planos, de nossos desejos, de nossos projetos, possíveis ou impossíveis, mas que nos fazem viajar, de olhos abertos, num universo de aspirações, a maioria das quais jamais haveremos de realizar.
         Tenho um amigo de quem, certa vez, ouvi uma confidência. Embora não seja ele um desses tipos viciados em jogo, aposta na “mega sena” eventualmente, sempre que o prêmio acumulado ultrapassa a casa dos dez milhões de reais. “Eu sei — ele me disse certa vez — que, pela lei das probabilidades, é mais fácil um Boeing cair na minha cabeça umas três vezes do que esse prêmio sair para mim. Mas eu não jogo pela esperança de ganhar... Mas compro, por uns poucos reais, o direito de, durante dois ou três dias, sonhar com todas as coisas maravilhosas que haverei de fazer, com aqueles milhões na minha conta bancária”.
        Fantasiar é uma forma excepcional de realizar os nossos desejos de difícil concretização, de sublimar as nossas frustrações, de realizar as nossas pequenas ou grandes desforras, de resgatar os nossos momentos de covardia ou indecisão. A fantasia é, assim, a mais singela “reparação de danos”, com que Deus nos repõe as esperanças e nos dá o consolo final. Mas deve haver um limite para estes sonhos?
         Certa vez, faz muitos e muitos anos, atravessando do Rio para Niterói numa daquelas grandes barcas apelidadas de “Cantareira”, a minha mãe ouviu casualmente um fiapo de conversa entre dois outros passageiros que também faziam o percurso, sentados bem atrás dela. E um deles contava ao outro, com perceptível alegria, sobre o barraco que estava construindo, para si e sua família, com grande sacrifício, como logo em seguida ficaria evidente. Porque, perguntado sobre o andamento da obra, ele respondeu, cheio de entusiasmo:
         — Ah, já está bem adiantada! Neste mês eu consegui colocar a porta e, no próximo, se Deus ajudar, vou sair para a compra do cadeado!
         Ainda me lembro do encantamento de minha mãe, que, depois, haveria de contar, muitas vezes a outras pessoas, esta pequena história de uma alegria tão grande, decorrente de um sonho tão humilde. Um sonho possível e que, por certo, há de ter sido realizado. Mas, também, há sonhos que jamais passarão disto.
         Pois a pergunta que me faço é, justamente, sobre os sonhos inviáveis. Aqueles que só se realizam no próprio ato de sonhar e que, por este mesmo motivo, poderiam transformar-se em novas decepções para o sonhador. Ora, costumo pensar que se o sonhador começa a acreditar em todos os seus sonhos, inclusive nos impossíveis, transforma a atividade lúdica, que é sonhar, num exercício de frustração. É preciso, assim, separar os sonhos realizáveis e marchar na direção deles. E manter os sonhos irrealizáveis, só com a função de nos divertir e dar prazer, neste plano do “faz de conta”...
         E, ao cuidar deste assunto é natural que eu me lembre de uma história que a minha sogra gostava de contar. Sobre um casal muito pobre, com quatro ou cinco filhos, vivendo numa indigência de fazer pena e morando num barraco de pau a pique, daqueles bem humildes. Seus únicos bens, por assim dizer, além do pobre barraco, eram algumas galinhas que criavam com cuidado, para delas dispor em alguma eventualidade.  Pois num final de tarde, conversavam sentados na soleira da porta, enquanto as crianças brincavam em torno do casal. Foi quando o marido disse, olhando as galinhas:
         — Sabe, mulher? Fico aqui pensando... Se a gente conseguisse juntar uns ovos e vender na feira, quem sabe a gente até pudesse comprar mais outras galinhas?
         — E pra que isso agora, homem? Quis saber a mulher...
       — Ah, porque aí a gente podia conseguir mais ovos e a gente ia vendendo e aumentando a quantidade de galinhas, até que, com a produção bem aumentada mesmo, devia dar pra comprar uma vaquinha...
          Neste ponto, a mulher, já entrando nos sonhos do marido, entusiasmou-se de verdade e até as crianças foram se chegando, para ouvir a conversa dos pais:
         — Puxa vida, Zé! Ia ser bom mesmo! Com a vaquinha, a gente podia até tirar um leite pros menino beberem! Já pensou? A gente botava aquele caneco grande, cheio de leite, pras crianças tomarem até encher o bucho!
         Foi quando o mais velho dos filhos meteu-se na conversa também, apontando para o menorzinho, que estava com as bochechas imundas de terra:
        — Mas eu num quero tomar leite no mesmo caneco com ele não!
         E o pai, irritadíssimo, pôs fim à reclamação, dando um tabefe na cabeça do "estraga prazeres":
        — Toma leite com o seu irmão, moleque!
        Isto, sim, é acreditar - nos próprios sonhos! O resto é apenas fantasia...



       

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