Crônica da semana - A FILHA DO PROFESSOR VANDICO


O professor Vandico era o diretor de um colégio onde fiz parte do meu curso ginasial, em algum lugar das Minas Gerais, para onde nos transferíramos, por força das atividades profissionais do meu pai. Ele era um desses homens corpulentos – grande e gordo – que, pela sua própria figura já impunha um “respeito temeroso” aos alunos do estabelecimento que dirigia. E, além disto, não cultivava uma relação muito próxima com os estudantes sob a sua administração. O que, de resto, não era mesmo uma coisa comum naquela época, em que diretores, professores e alunos estavam posicionados em degraus diferentes, de forma efetiva e clara, na escala dos direitos e obrigações de cada parte.
         No mesmo colégio também trabalhavam, como docentes, a filha e o genro do professor Vandico. Ele, lecionando Matemática; ela, lecionando História. Não sei muito sobre ele, porque nunca foi professor da minha turma. Mas, observado à distância, nos intervalos das aulas, não nos parecia um tipo dos mais simpáticos. Magrinho, com uns óculos de armação preta e grossa, dava a ideia de ser daqueles que se acham mais do que são: nariz empinado, jamais cumprimentava ou olhava de forma amigável para um aluno, como se isto o fizesse condescendente demais para conosco. Hoje, porém, já maduro e mais experiente, eu lhe concedo o benefício da dúvida, porque aquele jeito de ser bem poderia decorrer de alguma timidez. Embora eu ache que não.
         Dela, no entanto, que lecionava para a minha classe, posso dizer que se tratava de uma mulher muito bonita e sempre bem produzida: cabelos arrumados ao estilo de então, maquiagem discreta, porém, invariavelmente maquiada. E trajada, a cada dia, com singela elegância, o que significa dizer que se vestia sem exagero e de forma adequada para a sua atividade e para o horário. Mesmo que as aulas começassem às 7 horas da manhã e ainda no tempo do inverno, lá estava a professora Laura (digamos que se chamasse assim), toda arrumada, cabelos devidamente penteados, maquiada e bem vestida. Num apuro de fazer gosto!
        Aquilo despertava a atenção das alunas, que não trocariam – naquela estação fria – sua última meia hora de sono, pelo resultado de um visual tão caprichado. E imagino que mais intrigadas ainda deveriam ficar suas colegas de trabalho. Aos meninos, menos preocupados com os sacrifícios da produção feminina, o resultado parecia maravilhoso! Sobretudo porque, como era a moda daqueles tempos, ela usava umas roupas mais justas na parte de cima e umas saias rodadas, na altura dos joelhos, o que deixava à mostra suas lindas pernas. E isso arrastava aqueles adolescentes pelo incontrolável caminho da imaginação criadora, despertando em todos a vontade de dizer, como se diz lá em Minas: Jesus, Maria e José!
            Ninguém sabia bem qual era a mágica da professorinha, para estar sempre tão bonita e elegante, até que ela cometeu a imprudência de fazer, sobre o assunto, uma confidência para duas ou três de suas colegas, lá pela sala dos docentes. E como o sucesso dela provavelmente incomodava as outras, chego a acreditar que o assunto vazou para o restante do público interno do colégio, menos pelo espirito fofoqueiro de alguma das suas ouvintes; mas, sobretudo, pelo despeito, de quem se julgava mais feia ou menos atraente do que ela.
         Sobre os alunos, aquilo caiu como se fosse uma bomba! Porque, já estavam acostumados a acreditar que a professora Laura era uma mulher que já amanhecia bonita, pela própria natureza. Foi quando soubemos que não; que para estar sempre assim, o marido, que não tolerava vê-la com aquela cara de sono, os cabelos em desalinho e metida, por certo, numa camisola mais folgada — boa para dormir, mas sem muito “glamour” — exigia dela que se levantasse muito mais cedo do que ele, com o dia ainda amanhecendo. E que saísse do quarto sem acender a luz, para cuidar daquela produção toda. Porque ele não gostava de vê-la “ao natural”, segundo disseram, para não perder o “encantamento” por aquela com quem se casara.
        Não posso dizer qual terá sido a repercussão desta notícia entre os professores e professoras, quando o assunto se espalhou pelo colégio. Mas entre as alunas houve um “ah!” de despeitada satisfação e, entre os alunos, um “oh!” de absoluta surpresa. O fato é que, depois disso, passamos todos a ver a professora Laura entrar na sala, para as aulas de História, com um olhar diferente. Já não a víamos como aquela mulher exuberante de um marido invejado por todos; mas como a mulher oprimida de um marido machista, como poucos que cheguei a conhecer.
         Não sei o que aconteceu com eles, depois dessa época. Não sei se tiveram filhos, nem se ela, com o passar do tempo, manifestou sinais de haver herdado um pouco do biótipo do pai, o professor Vandico. Ou, ainda, se manteve aquele apuro e cuidado pelos anos que se seguiram, para o orgulho do exigente professor de Matemática.
          Contudo, sempre que me lembro dessa história antiga, o que espero é que aquela professora haja encontrado outro homem — no correr da vida e depois daquele tempo — que a tenha amado muito, apenas pela pessoa que era. Mas que, além do amor, tenha respeitado nela o inalienável direito feminino de não estar fisicamente bonita em todos os dias da sua vida. E, apesar disto, permanecer sendo querida e desejada pelo homem a quem resolver entregar o seu coração...



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