Crônica da semana - O CASAMENTO VIROU UMA BACANAL



Acredito que aconteça com a maioria das pessoas, porque comigo mesmo já aconteceu várias vezes. Certamente, há algum ramo da ciência que explique esse fato. Talvez seja um problema de cognição e linguagem; talvez isso esteja no campo da neurolinguística ou da própria neurologia...Sei lá! Só sei que acontece. Com alguns, esporadicamente. E com outros, de forma cotidiana, o que pode vir a ser aquele problema ao qual os especialistas chamam dislexia.




Mas não é da dislexia que pretendo tratar e nem creio que precise tratar-me de alguma dislexia. Tudo o que posso dizer é que já ocorreu comigo e, tenho certeza, com muita gente mais. Leio alguma coisa escrita, numa placa ou cartaz e, ao fazê-lo em voz alta, pronuncio outra coisa, totalmente diversa do que estava escrito onde eu li. 

Necessário explicar, para ser bem objetivo, que não se trata de uma dessas situações em que a gente altera de forma voluntária o que lê, para fazer uma brincadeira ou trocadilho, porque isso também é comum. Aqui a questão é de outra natureza: por alguma espécie de lapso, numa fração de segundo há um equívoco na transformação dos signos escritos em signos verbais. No meu caso, não é sempre e nem é frequente; mas acontece! 

De forma geral, isso não traz maiores consequências. Mas já tive a oportunidade de perceber esse lapso cometido por outras pessoas, durante um discurso ou uma locução em público que, para ser bem sincero, ficou um tanto embaraçoso para o orador da ocasião. Mas conheço um bom caso, para exemplificar a questão. 

Era um casal, das minhas relações de amizade e bem querer, que viajava com um filho por alguns países da Europa e reservara uma tarde só para visitar o Museu do Louvre, em Paris. O que, diga-se de passagem, é quase nada para quem deseja conhecer o acervo daquela que é uma das mais famosas instituições museológicas do mundo! 

Pois no dia agendado lá estava o trio, caminhando por aquelas galerias e setores infindáveis, nos quais se encontram obras representativas dos maiores gênios da pintura e da escultura, em todos os tempos, além de peças raras, de importância histórica ou arqueológica. Caminharam de uma ala para outra, como só se caminha numa maratona ou em visita ao museu parisiense. Até que, cansados, decidiram fazer uma pausa e se sentaram diante de uma tela, de quase um metro, por mais de meio. 

Foi aí que, observando aquele “óleo sobre tela”, onde aparecem dezenas de figuras — umas sentadas em torno de uma mesa e outras caminhando de um lado para o outro — com muita comida, músicos tocando e o vinho jorrando de ânforas em direção às taças de todos, a mulher do meu amigo comentou: 

— Essa pintura aí está parecendo que é a imagem de uma bacanal! Olha só a bagunça que está retratada nesse quadro: tem homens, mulheres, animais, bebida e tudo numa desordem total! 

Imediatamente o marido e o filho protestaram: 

— Que bacanal coisa nenhuma, criatura! 

— É não, mamãe! 

Mas ela não se deu por satisfeita, levantou-se e se aproximou da obra, para examinar melhor. Olhou, prestou atenção em algo que estava escrito na parte inferior da pintura e retornou com a convicção formada: 

— Eu não disse?! Lá embaixo está escrito “Noites de Cana”... É uma orgia mesmo! 

Ora, nunca ouvi falar de uma pintura com semelhante título, que merecesse estar no acervo do Louvre. Mas, como eu também não sou um grande conhecedor do assunto, pode ser que me faltasse essa informação preciosa. 

Ainda cético, o filho foi olhar o quadro de mais perto e voltou rindo. Tratava-se, na verdade de uma obra retratando a célebre passagem bíblica das “Bodas de Caná” (ou “Bodas de Canaã”), do pintor italiano renascentista Paolo Veronese. E foi o que o filho lhe disse: 

— Não é “Noites de Cana”, mamãe... É “Bodas de Canaã”! 

E assim, por um desses lapsos disléxicos aos quais estamos todos sujeitos ou, talvez, porque não entendesse tanto da pintura renascentista, foi que, aos olhos da minha amiga querida, aquele célebre casamento acabou virando uma bacanal.

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