Crônica - HOMEM DE CINQUENTA


Muitos anos antes que sucessivos governos resolvessem sucatear a educação, a saúde e o sistema bancário oficial, para possibilitar que a iniciativa privada pudesse aumentar os seus lucros, o Banco do Nordeste do Brasil era uma instituição respeitabilíssima, à qual cabia fomentar e financiar o desenvolvimento naquela região do país. Mas isso foi aí pelas décadas de 1950 a 1980, quando ser funcionário do BNB, do Banco do Brasil, do Banco da Amazônia ou de qualquer desses bancos oficiais, era um “status” desejado e sonhado por muitos jovens.
         Isto não significa, porém, que todos os seus funcionários vivessem, assim como se diz, “com o seu burrinho amarrado na sombra”. Porque, apesar do salário oferecido pelo banco, mais que razoável para as condições salariais de então, não era como se todos ganhassem um prêmio de loteria a cada mês. E além de tudo, alguns daqueles funcionários acabavam se entusiasmando demais e “metendo os pés pelas mãos" no seu orçamento mensal. Portanto, não era difícil estar trabalhando ao lado de um pobre endividado, vítima preferencial dos agiotas de então.
         Foi o que se deu com um funcionário do Banco do Nordeste que, na agência de Fortaleza, foi provavelmente o mais endividado, irresponsável e inconsequente servidor que o BNB já possuiu, na capital cearense! Era carinhosamente chamado de “Neguinho”, pelos seus colegas bancários, por tratar-se de um daqueles morenos bronzeados pelo maravilhoso sol do Ceará. Pois o “Neguinho”, segundo me contou um amigo de lá, só tinha dois credores: Deus e todo mundo! Devia a vários agiotas, já havia tomado todos os empréstimos que o seu péssimo cadastro possibilitava, tinha carnês aos montes, quase todos atrasados, além de várias promissórias e cheques pré-datados em poder de muitos... Um descontrole financeiro completo!
          Mesmo assim, ou talvez por isto mesmo, o “Neguinho” já estava, como se diz, entregando o problema prá Deus, sem pensar nos compromissos do dia seguinte. Se numa sexta-feira, após o expediente, a turma saia para uma “esticada”, enquanto todo mundo tomava cerveja ou conhaque, o “Neguinho” só pedia uísque! Até porque, no final, ele sempre sem dinheiro, propunha pagar a parte que lhe cabia com um cheque — sem fundos, naturalmente — e a turma, sabedora disto, não raras vezes, acabava dividindo a despesa por uma cota a menos. Não que ele fosse o tipo rematado do “aproveitador”, mas era aquele tipo de “teso” de quem todo mundo gosta.
         Deu-se que o BNB mandou um grupo de funcionários a São Paulo para um curso não sei do quê e, no meio deles, lá se foi o “Neguinho”. Que mesmo antes de viajar, já havia gasto uma parte das diárias. Chegou à capital paulista com pouca grana e, o pior, acompanhado de colegas que tinham um padrão financeiro bem melhor do que o dele. Toda noite, depois do curso, havia uma “esticada” e o “Neguinho”, junto com a turma! Na volta, ele só contando as maravilhas da programação, alguém que o conhecia bem, perguntou:
             — Mas... E na hora de pagar a conta?
            E o “Neguinho”, sem pudor algum, explicava:
          — Todo mundo metia a mão no bolso e eu também! Só que eu fazia isso mais devagar...
         Mas na noite de despedida do curso, a coisa se complicou para o lado dele. Naquela época o ponto de maior luxo da boemia em São Paulo ficava na Rua Major Sertório, onde mulheres inimagináveis administravam contas bancárias de fazer inveja a qualquer empresário de médio porte: a boate “La Licorne”, que só era frequentada pelos figurões de então. E foi justamente para lá que a turma do curso resolveu ir naquela última noite. Como, de volta à sua agência do BNB em Fortaleza, contaria o próprio “Neguinho” aos seus colegas, que se escangalhavam de rir.
         A noite foi maravilhosa, na mesa só vinham champanhe e uísque importados. Com o passar do tempo, aquelas mulheres, inacreditáveis de tão lindas, foram se chegando para a mesa e cada qual tomou a companhia de uma delas. Inclusive ele, é claro! Mais tarde, foram saindo, um a um, conduzidos pelas preciosas, em direção aos apartamentos das próprias meninas, onde a noite foi tão indescritível quanto impublicável. E ao amanhecer ainda havia um café, posto à mesa para o convidado.
           Sem ter a mínima ideia do quanto custaria um programa daqueles — estimam os mais versados que entre quinhentos e seiscentos cruzeiros, na época — o “Neguinho” nem perguntou nada. Tirou cinquenta cruzeiros do bolso, pôs em cima da mesa e foi se levantando, quando a beldade perdeu a classe e a calma, tentando segurá-lo pela camisa:
         — O que, seu vagabundo?! Você está me achando com cara de mulher de cinquenta cruzeiros?!
         E o “Neguinho”, já abrindo a porta, enquanto a mulher empunhava a faca de pão:
         — De jeito nenhum, minha filha! Você é mulher de “mil cruzeiros”! Eu é que sou homem de “cinquenta”!
         Foi acudido, já no corredor, por um companheiro de curso que, saindo de um apartamento ao lado, justamente naquela hora, vendo a cena e compreendendo tudo, assumiu a despesa da noite, dizendo ao “Neguinho” que depois acertariam a conta. Embora eu duvide muito que, algum dia, o outro tenha conseguido receber aquele dinheiro de volta...



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