UMA ALMA GENEROSA


Muita gente conhece a história da velhinha que estava numa calçada, só olhando para o outro lado da rua. Mas o sinal fechava, tornava a abrir e a idosa não parecia tomar coragem para cruzar a faixa de pedestres, até que lhe apareceu uma alma generosa, que a segurou pelo braço e a conduziu até a calçada do lado oposto. Embora ela agradecesse e dissesse ao caridoso que não precisava da ajuda. 

Todos sabemos o quanto determinadas pessoas, a partir de certa idade, resistem em admitir que já não possuem a mesma agilidade e segurança no caminhar, como se isso fosse a admissão de sua decadência física. Pois foi o que supôs o gentil cavalheiro, que, sem dar muita atenção à recusa da idosa em receber o apoio que lhe era oferecido, segurou-a pelo braço — com delicadeza, mas de maneira firme — e a conduziu até o outro lado da rua. No entanto, concluída a travessia, a velhinha disse ao seu benfeitor, entre irritada e impaciente: 

— Mas que merda, rapaz! Eu não queria atravessar a rua, nem vir para o lado de cá! Estava só olhando umas crianças correndo por aqui, enquanto esperava a minha filha sair daquela loja que fica lá do outro lado, bem na frente do local de onde você me tirou, contra a minha vontade! Pois, agora, trate de me levar de volta, seu bosta! 

Pode parecer só uma historinha, mas essas coisas acontecem mesmo! Em tais ou noutras circunstâncias. E o caso da velhinha me trouxe à lembrança um episódio, da época em que eu lecionava em determinada universidade, numa noite bem fria de inverno. 

Cumpria os primeiros horários numa turma, onde uma aluna chamou a minha atenção pelo fato de que, apesar do blusão de couro, estivesse usando uma saia muito curta e sapatos altíssimos. Embora eu não tivesse nada a ver com a vida dela, o que me ocorreu foi que aquilo era meio inadequado para ir à faculdade, num começo de semana, com o clima gelado daquela noite. Pensei com os meus botões que, mais tarde, quando o frio aumentasse e os sapatos começassem a apertar, ela iria abominar aquela elegância toda! 

O fato é que homem é assim mesmo. Não entende bem que, para a maioria das mulheres, o sofrimento físico é uma moeda válida e de uso regular, que elas utilizam em busca da beleza e da elegância. Pois então, deixemos que elas decidam sobre essas coisas. Toquei a minha aula em frente e não pensei mais no assunto. 

Só que mais tarde, após a última aula do turno, depois de passar pela secretaria para deixar o meu material de trabalho, registrei o meu ponto de saída e fui apanhar o meu carro no estacionamento, já praticamente vazio. Saí e, quando alcancei a rua foi que percebi, no ponto de ônibus que havia do lado oposto, aquela mesma aluna, enfrentando um vento cortante. Ocorreu-me que, naquele lugar e àquela hora, sem mais nenhum passageiro à espera do transporte, além do desconforto, ela estaria correndo algum risco. 

Fiz o contorno e parei ao lado dela, perguntando se iria para casa e onde morava. Respondeu-me que sim. E como morasse num bairro próximo ao meu, eu falei que ela entrasse, porque lhe daria uma carona. Fomos conversando sobre essas coisas sem importância, até que, ao entrar na rua que indicara, perguntei qual era a sua casa. Apontou uma delas — uma casa bonita, por sinal — e eu parei. Ela desceu, mas, enquanto eu esperei que passasse pelo portão, ela não entrou. 

Achei aquilo estranho e imaginei que, talvez, aquela não fosse mesmo a casa dela. Talvez morasse numa casa mais humilde e tivesse um pouco envergonhada por isso. Aí, para não lhe criar nenhum embaraço, acelerei o carro e fui embora, observando pelo retrovisor, para ver se iria dirigir-se a outro portão. Mas ela não fez nenhum movimento até que eu dobrasse a esquina e perdesse a sua visão no espelho. 

Tomei o rumo da minha casa, sem entender direito o motivo pelo qual ela se comportara daquela maneira. Mas só fui compreender a causa daquilo quando comentei sobre isso, alguns dias depois, com um colega de trabalho. Ele me olhou de um jeito engraçado, começou a rir e me disse: 

— O que é isso, amigo? Você não sabe mesmo?! Aquela menina é garota de programa! Certamente estava no ponto do ônibus esperando que lhe aparecesse algum dos seus clientes. E como você apareceu primeiro e lhe ofereceu a carona, deve ter imaginado que o professor seria o cliente da vez! 

Nós dois rimos muito, pelo ridículo da situação. Na hora e sempre que nos lembrávamos do caso, depois que tudo ficou esclarecido para mim. Dos meus bons propósitos, do estrago que fizera nos planos da garota e do prejuízo financeiro que, naquela segunda-feira, eu lhe causei sem querer. Porque foi sem querer — eu juro! — Que acabei atrapalhando a noite da menina! 

Só faltou ela me pedir que a levasse de volta ao ponto do ônibus de onde a retirei. O que posso garantir, no entanto, é que, assim como no caso da velhinha que não queria atravessar a rua, neste também foi uma alma generosa, movida pelas melhores intenções, quem ferrou a noite da quenga! 

Wagner Fontenelle Pessôa

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