Crônica da semana - ABENÇOADA INGRATIDÃO
Wagner Fontenelle Pessôa (*)
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Certa vez, eu havia terminado uma
aula e, como era comum acontecer, fiquei conversando com alguns alunos no
intervalo. Falávamos sobre generalidades, até que um deles, a propósito de
qualquer coisa que eu dissera, fez-me uma pergunta engraçada:
—
Professor, você se arrepende de alguma coisa que já fez na vida?
Eu
lhe disse que somente pessoas pouco maduras ou muito arrogantes haveriam de
responder negativamente a uma pergunta como aquela. Toda pessoa comete erros na
vida. E quem amadurece, alcança, naturalmente, a consciência dos erros que
cometeu.
Acrescentei,
porém, que se nenhum ser humano possui o atributo da infalibilidade, temos
todos, como compensação, a valiosa oportunidade de aprender alguma coisa com os
nossos erros. E que isto contribui, de forma significativa, para o nosso
amadurecimento.
Concluí
dizendo que, tão certo quanto o fato de que tenho cometido muitos erros ao
longo de minha vida, é que, com eles, eu também aprendi coisas muito importantes
para mim.
Foi
aí que uma aluna me provocou:
—
Pois então diga aí uma coisa que você fez e depois se arrependeu.
Intimamente
achei graça daquela forma algo indiscreta pela qual a adolescente me fez uma
pergunta tão pessoal. Mas revirando os “papéis da minha lembrança”, não tive
nenhuma dificuldade em encontrar o exemplo que ela queria.
Eu
me arrependo, por exemplo, do que fiz, quando ainda morava com os meus pais,
embora tivesse o meu trabalho e possuísse o meu próprio carro — o que significa
dizer, uma razoável independência — ao sair de casa, numa noite de sábado.
Passei pela minha mãe que estava na sala e, já na porta, eu lhe disse um “tchau” meio
apressado. E aí, ela falou:
—
Volte cedo, meu filho...
Do
alto da minha imaturidade, tive a impressão de que a minha mãe estava querendo regular a minha
vida, o que não cabia mais, naquela altura das coisas. E aí, com um tom de impaciência,
eu perguntei aquela bobagem:
—
E por que eu deveria voltar cedo?
Alongando
aquele inesquecível olhar azul em minha direção, ela me respondeu, sem
demonstrar nenhum ressentimento:
—
Por nada, meu filho... Estou apenas tentando lhe dizer que eu me preocupo, quando
você sai e volta tarde.
Guardei
para sempre aquela cena entre as minhas lembranças, achando que eu havia sido gratuitamente
desatencioso com a minha mãe. Mas levei muitos anos até compreender o
verdadeiro significado da grosseria que eu lhe fizera, retribuindo a sua
manifestação de amor com uma indelicadeza e a minha indiferença. E foi então que
eu, realmente, me arrependi.
O
problema é que ninguém consegue compreender toda a complexidade da relação que
existe entre os pais e os filhos, sem ter vivido os dois lados de uma relação
dessas. É por isto que, muito freqüentemente, as pessoas mais velhas têm uma
sensação de tempo perdido, de oportunidade desperdiçada, do amor que não se
usufruiu por inteiro, quando se lembram dos seus pais que já se foram.
Mas
estou absolutamente seguro de que, na maior parte das vezes, certas coisas que
os filhos fazem ou dizem — e que nos magoam tanto — não são o simples produto
de sua determinação em nos ferir ou menosprezar o nossos motivos, as nossas
angústias e preocupações. São o resultado da mais pura ignorância sobre como se
sente um pai ou uma mãe, diante da vinda e da vida de cada um de seus filhos.
Eles
não sabem o que é angustiar-se pelo futuro deles. O que é perder o sono no meio
da noite, porque já é muito tarde e eles ainda não voltaram. O que é levantar e
ir até o quarto onde dormem, para ver se estão cobertos ou se a febre já
diminuiu. Com certeza nem percebem o custo de compartilhar o seu sofrimento,
pelos namoros que não começam e pelos que terminam. Por isto e por outras
tantas coisas é que, às vezes, os filhos parecem ser tão ingratos.
Abençoada
ingratidão! Porque significa que os nossos filhos ainda não experimentaram
todas as dores do mundo...
(*) O autor, Wagner
Fontenelle Pessôa, é professor, advogado, cronista, comentarista e escritor
diletante.
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