Crônica da semana - SORRISO INDÍGENA
Naqueles inesquecíveis cinco
anos que passei na cidade de Manaus, além de exercer o meu ofício como
professor da rede federal de ensino, durante certo tempo também ocupei um cargo
na direção da EMAMTUR, que era, naquela época, o órgão oficial de turismo do
Estado do Amazonas, convidado para compor a sua equipe de trabalho pelo então
presidente da empresa.
Assumi a diretoria de uma das suas divisões, justamente
numa época em que a Zona Franca de Manaus fervilhava de turistas vindos do país
inteiro e de outros países da América do Sul, ávidos pelos produtos importados
e baratos que o seu comércio oferecia e pelos atrativos da exuberante natureza
amazônica.
A
cidade era, na década de 1970, o paraíso do turismo de compras. Mas, a reboque
das vantagens que obtinham na aquisição dos importados, os visitantes também
queriam experimentar as emoções de estar em contato com a “selva” (que bicho
besta para ser enganado é o tal do turista) e navegar pelos rios e igarapés da
região. Por isto, ao lado do
comércio das mercadorias vindas do exterior, outra atividade que teve na região
um grande impulso, naqueles tempos, foi a das agências de turismo, que se
esbaldaram explorando esse filão na capital dos manauaras.
A
quase totalidade dos visitantes, sobretudo os brasileiros, costumava ser muito desinformada
acerca daquela cidade e daquela exuberante região. De tal sorte que, os que viajavam
para lá atraídos pelas delícias da Zona Franca, acreditavam — e eram
estimulados a isso pelas agências de turismo — que bastaria sair uns dois ou
três quilômetros do centro de Manaus, para estar adentrando a floresta
amazônica. E que assim poderiam, a qualquer momento, defrontar-se com um
jacaré, uma onça ou um índio.
Pois já que a ignorância de uns acaba sendo proveitosa
para outros, as agências de turismo da capital amazonense é que se deram bem,
organizando excursões pelo Rio Negro, pelos igarapés e igapós da região. Os barcos
nem iam tão longe, mas o propósito era o de provocar aquela sensação nos
turistas, de que estavam vivendo uma aventura na selva e sendo levados por áreas
não muito exploradas. O pior é que a maioria deles acreditava nisso mesmo!
Em certa ocasião, a maior dessas agências
nos fez um convite para que conhecêssemos o novo “tour”, que estava inaugurando.
De vez em quando, esses convites eram enviados como cortesia pelas agências, inclusive
porque era a EMAMTUR que lhes fornecia a maior parte do material promocional que
elas distribuíam aos usuários de seus serviços, sobre as maravilhas turísticas
do Estado (artesanato, comidas e danças típicas, folclore, etc.). E como seria
num dia de sábado, resolvi embarcar nesse passeio, para saber o que ele traria
de novo.
De novo, o que ele trazia era um barco maior do que os
outros, um serviço de bordo mais caprichado, com lanches e bebidas, além de um
almoço com comidas típicas num restaurante flutuante que a empresa acabara de
inaugurar. De resto, a mesma embromação para turistas deslumbrados, como era de
costume.
Devo ressaltar, embora isto seja meio óbvio, que, já
naquela época, eram raros os vestígios de vida selvagem nas cercanias de
Manaus. Exceto, talvez, por alguns poucos animais silvestres, como pássaros e
cobras, porque a presença humana dita civilizada, como sabem todos, tem essa
propriedade de destruir o meio ambiente e seus elementos naturais. Mesmo assim,
os guias em atividade nesse tipo de “tour” faziam a maior encenação, enxergando
animais onde eles não existiam.
— Olha lá um jacaré!
— Cadê?! Onde? Em que direção?
— Puxa vida, acabou de mergulhar...
Mas foi bem ali!
E ficava aquele bando de crédulos, com
as câmeras preparadas para registrar o seu encontro com algum jacaré ou
jaguatirica, que nunca iriam aparecer naqueles lugares pelos quais seguia o
passeio. Mas o ponto alto desse novo “tour” foi quando o piloto reduziu a
velocidade da embarcação e se aproximou da margem de um igarapé. Foi quando o
guia, falando em tom mais baixo, avisou aos incautos turistas:
— Vejam aquilo ali...
“Aquilo ali” era um sujeito — com o biótipo característico
do amazônida — que, cobrindo “suas vergonhas” apenas com uma tanga, fazia uso
de um arco para disparar flechas contra o tronco de uma árvore. Estava de
costas para o barco e agia como se nem estivesse percebendo a presença daqueles
intrusos. Mas o “frisson” a bordo foi geral e as câmeras começaram a disparar
flashes, imediatamente e seguidas vezes.
Para mim parecia óbvio demais que nenhum índio poderia
estar naquele lugar, a centenas ou, talvez, milhares de quilômetros de qualquer
tribo conhecida naquela região. Mas, para os turistas, essa lógica não funcionava.
O que valia era a emoção daquele encontro inusitado. Até que, com o deslocamento
do barco, ele foi aparecendo de lado e, por fim, quase de frente.
Foi aí que vi o rosto do índio e ele também me viu. O seu
olhar traduziu um misto de surpresa e apreensão, talvez pelo temor de que eu
lhe estragasse o convincente desempenho. Era Zezinho, um auxiliar de serviços
gerais na EMAMTUR, quem eu via, de segunda a sexta-feira, fazendo a limpeza e
outras coisas mais. A única dificuldade foi conter o riso. E o passeio
prosseguiu...
Na
segunda-feira seguinte ele foi à minha sala, bem cedo, para explicar que aquilo
era um “bico” que fazia nos finais de semana, como se me devesse alguma
explicação. E só me pediu, com o seu jeito humilde, que não comentasse sobre o
fato na empresa. Por certo, não queria que o assunto se transformasse em motivo
de chacota entre os colegas, por compreensível razão.
Prometi que não falaria sobre isso a ninguém e, realmente,
cumpri a minha promessa. Mas não se livrou — sempre que nos víamos sozinhos
pelos corredores ou salas da EMAMTUR — de que eu o chamasse de “Cacique
Zezinho”. No início, ele ficava meio sem graça com a brincadeira. Mas, com o
passar do tempo, passou a reagir com o que eu supunha ser uma espécie de “sorriso
indígena”.
(*) O autor, Wagner Fontenelle Pessôa, é
professor, advogado, cronista, comentarista e escritor diletante.
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