Crónica da semana - HÓSPEDE SEM NOÇÃO

O meu avô materno era um homem dado a rompantes emocionais, a extremos de amor e ódio pelas pessoas com quem “estava de boa” (como se diz agora) ou com as quais se inimizava, frequentemente, por razões de pouca ou nenhuma importância.
  Na maior parte das vezes, tais acessos de carinho extremado ou de irritação profunda ocorriam sem uma motivação razoável que os justificasse, tanto numa direção, quanto noutra. E que talvez se explicassem pelo temperamento característico dos Fontenelle da Silveira — mais Silveira que Fontenelle, até — do que por razões plausíveis, que dessem causa àquelas reações exacerbadas, que tinha de quando em vez.
O problema é que, com o mesmo ímpeto e despropósito que “ficava de mal” com algum familiar ou amigo, ele fazia as pazes, como se nada houvesse acontecido entre o momento da briga e a hora da reconciliação. Certa vez estranhou-se com um tio por uma questão de nada ou quase nada. Chegou a casa irritadíssimo e foi dizendo à mulher: “Eu nunca mais falarei com aquele cretino, que não passa de um beócio”! Apesar do que, alguns meses mais tarde, após um encontro de ambos na casa de outro parente, regado por uma boa cachacinha, que ambos apreciavam, retornou abraçado ao mesmo tio, dizendo para a mulher:
— Eunice! Veja aqui um cafezinho para o meu tio querido, que ele hoje vai almoçar conosco!
  Essas coisas irritavam profundamente a minha avó. No entanto, submissa ao marido, como costumavam ser as mulheres nordestinas daqueles tempos, ela se limitava a dizer para os filhos:
— Eu não aguento essas coisas do seu pai!
Mas ia aguentando... Embora, com efeito, aquilo fosse de “dar com um porrete na paciência” de qualquer vivente, porque nenhuma pessoa “normal” — digamos assim — pode conceber que se rompam as relações com um amigo por qualquer insignificância ou que as mesmas sejam reatadas por uma simples mudança de humor, como se nada tivesse havido.
  O meu avô era advogado e professor, tendo sido catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Ceará. E ao tempo em que ainda advogava, certa vez foi procurado no escritório por um médico, seu conhecido de longa data, que, voltando para casa fora do horário habitual, encontrou sua cara metade prestando relevantes serviços de natureza eventual a um mancebo conhecido do casal.
Na falta de alguma ideia mais criativa para enfrentar a situação, o facultativo sacou um revólver da valise que sempre trazia consigo e meteu bala na esposa amantíssima, que, felizmente, não foi atingida. Porque o Dr. Guilherme, além de chifrudo, tinha péssima pontaria. Em seguida, desorientado, correu para o escritório do meu avô, que não só assumiu a sua defesa, como também decidiu leva-lo para casa, a fim de evitar a sua prisão em flagrante.
Uma péssima ideia, para dizer o mínimo, porque o traído era totalmente sem noção e a estada na residência dos meus avós, que deveria ser por poucos dias, acabou durando bem dois meses. Pois, a cada dia que se passava o tal “doutor Guilherme” se fazia menos cerimonioso e mais espaçoso na casa alheia. Em grande parte, por culpa do anfitrião, que procurava cercar o hóspede com as atenções da família, cheio de mesuras, como era do seu estilo, quando queria agradar alguém:
— Eunice, o doutor Guilherme gosta do leite com bastante espuma!
E ficava a minha avó, feito uma “Amélia” às antigas, a despejar o leite de um copo para outro, por vezes seguidas, até que o leite espumoso do folgado lhe fosse servido. Noutra hora, era o próprio “doutor Guilherme” quem exprimia o seu desejo gastronômico, como se a casa na qual se alojara fosse um hotel:
— Dona Eunice, hoje eu vou querer dois ovos mexidos na manteiga para o café da manhã!
E lá se ia a vovó comandar o pessoal da cozinha ou, muitas das vezes, preparar ela própria a solicitação do folgado hóspede.
Não posso dizer no que resultou o processo pela tentativa de homicídio ao qual respondeu o cliente do meu avô. O certo é que, ao final de tudo, ele se reconciliou com a mulher e voltou para casa. Se ela lhe foi fiel dali por diante ou se o marido é que se conformou com os modos generosos da dadivosa, eu não sei.
Mas sei que, em nossa família, para todo sempre, o designativo “doutor Guilherme” passou a ser um sinônimo de gente espaçosa, folgada e sem noção. Pois assim é que nos referimos a quem se põe à vontade demais, além do razoável, quando está na casa alheia! Uma consequência direta da junção dos rapapés e mesuras do meu avô, com as inconveniências daquele corno destemperado.


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