Cônica da semana - COBERTO DE RAZÃO!

 Wagner Fontenelle Pessôa                         
Andando pela cidade, num dia desses, eu me deparei com um ex-aluno, que cursara comigo duas ou três disciplinas, lá pelo início da graduação em Direito. Sempre achei que ele desistiria do curso, porque, mais do que aprender e entender as coisas, ele parecia interessado em contestar os fatos jurídicos, como se fosse possível modificar a legislação em vigor com um simples “não concordo com essa regra”.


            O professor explicava à turma, por exemplo, que o princípio segundo o qual a “dúvida deve beneficiar o réu” só vale para a sentença, porque, quanto ao processo, “em caso de dúvida, o interesse que prevalece é o da sociedade”. Isto é, não se condena ninguém sem o pleno convencimento de sua culpa, mas nem por isto o acusado estará isento de provar a própria inocência mediante o devido processo legal. Para ele, no entanto, isso não era o suficiente e logo se apressava em dizer:

            — Discordo! Não há, no Direito, aquela máxima de que todos são considerados inocentes até prova em contrário?

            A afirmação que o professor acabara de fazer apenas confirmava isso. No entanto, do alto de sua obtusidade, o beócio não conseguia entender a lógica da coisa! E, para demonstrar os seus atributos de “livre pensador”, mesmo depois de esclarecida a questão, que o restante da classe já compreendera, como uma mula empacada, ele continuava a insistir na sua discordância:

            — Mas eu não concordo que seja assim!

            Muitas vezes senti o ímpeto de sugerir que fosse bater às portas do Poder Legislativo, para pedir aos parlamentares que mudassem as coisas ou dos tribunais superiores, para que alterassem a jurisprudência. Embora a minha esperança fosse mesmo a de que ele acabasse saindo, de um lugar ou do outro, algemado ou metido numa camisa de força! O fato, porém, é que, antes dele, quem se desligou da referida universidade fui eu. Uma providencial iniciativa que me livrou daquela “mala sem alça”. Até que, recentemente, nos vimos numa das ruas do centro da cidade.

            Preferia que não percebesse a minha presença por ali. Mas, como os chatos sempre nos enxergam, mesmo em meio a uma multidão, ele me viu e veio puxar uma conversa comigo, cheio de efusão:

            — E aí, mestre?! O senhor anda sumido... Está fazendo o quê?!

            Respondi que, naquele exato momento, estava conversando com ele, o que deveria ser meio óbvio. Mas que, fora disso, eu continuava a tocar a vida jeito de sempre, cuidando das minhas coisas, exceto lecionar naquela universidade, com a graça do Senhor! Foi quando ele me deu a surpreendente notícia:

            — Pois eu, mestre, já concluí o meu curso, fui reprovado duas vezes na prova da OAB, mas vou continuar tentando, até conseguir.

            Sinceramente, eu não me surpreendi que ele tivesse sido “ripado” nas duas tentativas para obter a sua inscrição na Ordem dos Advogados, porque o sujeito é uma besta quadrada, conforme explicitado e exemplificado. Surpreendente, para mim, foi que ele tenha conseguido concluir o bacharelado em Direito, tendo ideias próprias e aquela “lógica de jumento”, acerca da lei e da justiça!

            Poderíamos ter encerrado a conversa naquele ponto. Mas, como é de seu costume, ele resolveu perorar acerca do conhecimento e do saber, dizendo que ao concluir a faculdade e enfrentar as provas da OAB é que percebeu o quanto ainda lhe faltava aprender:

            — Um advogado, professor, não pode parar de estudar nunca!

            Proferiu a sentença como se aquilo fosse uma descoberta própria e uma revelação para mim. E quando eu pretendia acrescentar que, além de estudar, o profissional do Direito também precisa ser capaz de interpretar aquilo que lê (o que não era o costume dele), fui interrompido por uma citação que fez, com ares de erudição:

            — Como já dizia Shakespeare, “só sei que nada sei”!

            O verdadeiro autor da afirmação, ou aquele a quem atribuem a frase, que é o filósofo grego Sócrates, deve ter rolado como um peão na sepultura, ao saber que o poeta e dramaturgo William Shakespeare lhe havia plagiado a célebre formulação.

            Quanto ao meu ex-aluno, só o que me ocorreu, foi acrescentar que, em relação à conjectura socrática, ele estava coberto de razão: continua a ser um “poço de ignorância” e totalmente sem noção da anta que ele é!

            O magistério é, sem dúvida alguma, uma profissão que exige muita paciência...

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