Crônica da semana - EU NÃO SOU GENTE, POR ACASO?
Wagner Fontenelle Pessôa (*)
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A minha bisavó pelo lado da minha avó
materna, era uma figura realmente engraçada. Ela se chamava Michol (um nome
bíblico, que se pronuncia “Micol”, com se fosse escrito sem o H) e eu mesmo já
me ocupei de mencioná-la algumas vezes, num ou noutro texto que escrevi,
protagonizando situações divertidas. O que, no entanto, só é novidade para quem
não faz parte de sua descendência; porque os que descendem dela, por certo já
ouviram e ainda repetem todas essas histórias, que fazem parte do patrimônio
imaterial da nossa família.
A
sua verve, sua capacidade de reagir diante de determinadas circunstâncias ou em
determinadas situações, de forma pronta e cômica, era inigualável! Sendo este o
motivo pelo qual, na família, os casos que a envolvem, assim como suas tiradas e
reações e pitorescas, são contados e recontados, décadas e décadas depois que
ela se foi, passando de cada geração às seguintes, por tradição oral.
Sua
personalidade foi tão marcante para todos que a conheceram, que não causa
surpresa a nenhum de nós ouvirmos os filhos dos filhos de seus filhos, que não
tiveram qualquer contato com ela e nem chegaram a conhecê-la, repetirem coisas
que ela disse — suas falas, suas respostas e seus argumentos — que ficam a meio
caminho entre a demonstração da sua experiência de vida e do quanto ela
conhecia a natureza humana, um conselho ou, simplesmente, uma chacota. E todos
ainda nos divertimos com isto.
Dizia
coisas recheadas de comicidade, muitas vezes, inesperadas e inimagináveis, para
quem convivia com ela, embora sem o objetivo de fazer graça ou parecer
divertida. Certas coisas que dizia eram engraçadas, justamente, porque aquilo
era espontâneo nela: suas reações, o fraseado e a fina ironia, com que lidava
com algumas situações, por vezes, embaraçosas.
Era
uma pessoa de parcos recursos, sem posses, que vivia da pequena pensão que lhe
deixara o marido. Mesmo assim, legou para a sua descendência uma herança
inestimável, na forma do seu incomparável senso de humor, suficiente para
enriquecer as muitas gerações que descenderam dela. Porque, como sabemos todos,
o bom humor é o melhor tempero da vida.
Pois,
de suas incontáveis tiradas, há uma que bem caracteriza o seu jeito de ser e
reagir, diante de uma situação que se deu durante o tempo em que morou com a sua
filha e o marido, meus avós, além dos filhos do casal, que eram quase todos
solteiros ainda.
Estava
sozinha em casa quando alguém bateu à porta e ela foi atender. Era uma pessoa
que ela não nunca vira mais gordo e também não a conhecia, procurando pelo meu
avô:
—
O Dr. Humberto está?
A
minha bisavó explicou que ele não se encontrava e o tipo — meio tosco, pelo que
se percebe pela narrativa — perguntou se, neste caso, poderia falar com a minha
avó:
—
E a dona Eunice, eu posso falar com ela?
Novamente
a resposta foi negativa e o tabaréu, fez mais uma última tentativa:
—
E as meninas? Tem alguma delas aí?
As
“meninas”, no caso, eram a minha mãe e suas irmãs. Nenhuma das quais, para a
frustração da criatura que se encontrava diante dela, estava em casa naquele momento.
Pela terceira vez ela disse que não, o que levou o indivíduo a perguntar, como
se aquilo fosse óbvio:
—
Quer dizer que não tem ninguém em casa?
Transformando
a compreensível indignação numa resposta bem humorada, minha avó Michol arrematou
a questão zombando do interlocutor impertinente, como era muito próprio do seu
estilo:
—
Só estamos eu e o gato! Eu não sou gente, por acaso?
Como
assim, “não tem ninguém em casa”, se
ela estava ali, parada bem na frente dele? Com efeito, que sujeitinho mais sem
noção e que resposta adequada!
(*) O autor, Wagner Fontenelle Pessôa, é
professor, advogado, cronista, comentarista e escritor diletante.
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