ABENÇOADA INTERVENÇÃO!
Morei por um tempo, no
início da década de 1970, na cidade de Manaus, que naquela época era uma
capital bastante mais acanhada do que é hoje, sem a pujança e as dimensões dos
dias atuais. Porque estava se erguendo do marasmo de algumas décadas — desde
que o chamado “ciclo da borracha” tivera o seu declínio — para entrar numa nova
etapa de sua história, alavancada pela “zona franca” para a importação e
exportação de produtos, que o governo federal criara por decreto e que
impulsionou, de forma extraordinária, a economia e o desenvolvimento daquela
região.
Do tempo que passei morando em Manaus eu me lembro de
muitas pessoas e de muitas coisas. Mas uma das figuras que sempre emerge das
minhas melhores lembranças, dentre as várias com quem convivi e a quem me
afeiçoei, está a de um artista plástico com quem tive a boa sorte de conviver,
por conta de sermos colegas de magistério numa mesma instituição: o desenhista,
pintor e escultor Moacir Andrade.
Tive a sorte e a oportunidade de
conviver com ele naqueles anos em que morei por lá, porque, das nossas relações
profissionais, resultou um companheirismo afetuoso entre nós (embora sendo eu
muito mais jovem), que me trouxe a oportunidade de aprender muita coisa sobre
aquilo em que ele era um mestre: as artes plásticas. O que não me tornou nenhum
especialista nesse tema, mas me fez um pouco menos ignorante no assunto. Contudo,
não é apenas por isso que eu gostava de estar ao seu lado e de conversar com
ele.
Era dotado de uma inteligência
fulgurante e a sua personalidade singular era marcada por traços que muito me
agradavam e divertiam: de vez em quando ele agia ou reagia de maneira
inesperada diante de determinadas situações, que proporcionava boas risadas a
quem estivesse por perto. Era naturalmente engraçado, embora sem a menor
intenção de fazer graça. E de uma simplicidade cativante no trato com as
pessoas, para quem, como ele, era tão reverenciado pelo valor sua arte.
Seu carro era uma Rural Wyllys, mais
prá lá do que prá cá, que andava com problemas na buzina. Ora funcionava, ora
não funcionava. Por conta disso, ele já recorrera a uma oficina mecânica duas
ou três vezes, sem resolver o defeito: daí a pouco, o problema da buzina
retornava. Aí ele perdeu a paciência e mandou fixar um suporte com um sino ao
lado da porta do motorista. Assim, quando precisava buzinar, segurava na
cordinha e badalava o sino para chamar a atenção de quem estivesse nas
proximidades. As pessoas morriam de rir da sua ideia. E naquele tempo, por
evidente, os fiscais do trânsito não eram tão rigorosos com as regras da
legislação.
Certa vez, já quase no final do meu
curso de Direito, fui convidado pelo diretor da instituição na qual eu
lecionava, para assistir um julgamento em que ele (o meu diretor) funcionaria
como defensor do réu. Fui, embora sabendo que precisaria permanecer até o final
da sessão do júri, para não cometer uma indelicadeza com o causídico. E apesar
de sempre ter gostado muito da área criminal, devo dizer que, especificamente
nesse caso, achei a experiência muito cansativa e maçante!
Talvez,
pelas características do caso. Talvez, pelo número excessivo de depoimentos
tomados pelo juiz em plenário, que retardaram o início dos debates. Talvez,
pelas alentadas argumentações da acusação e defesa, com direito a réplica e
tréplica, que me pareceram repetitivas e excessivas. Para mim, o ponto alto
dessa experiência foi que lá também se encontrava — convocado para compor o
corpo de jurados — ninguém menos do que o meu amigo Moacir Andrade. E foi dele
que veio a melhor intervenção naquele julgamento.
A sessão tivera início por volta das
13 horas com o depoimento dos réus, dos peritos, das testemunhas e as
intermináveis perguntas do juiz, da acusação e da defesa. Só depois de ultrapassada
essa fase, muito além das 18 horas, foi que começou a falar a acusação. E já
passava das oito da noite, mas o promotor de justiça não concluía a sua
cansativa argumentação, quando o jurado Moacir Andrade levantou a mão.
O juiz tocou a campainha, interrompendo
a inflamada locução do acusador, observando que um dos jurados parecia estar
com alguma dúvida acerca daquele ponto. E que lhe daria a oportunidade de fazer
a pergunta. Foi quando o Moacir Andrade, com uma expressão de absoluta
naturalidade estampada no rosto, indagou:
— A que horas será servido o jantar?
Uma gargalhada sonora ecoou na sala
do tribunal. Nem o juiz, nem os advogados, nem os demais jurados se aguentaram!
E, ainda rindo, o meritíssimo respondeu que o restaurante já havia entregado a
comida, que seria servida tão logo o promotor terminasse de ferrar com a vida
do réu! Bem entendido, ele não disse com essas palavras; quem está dizendo isso
sou eu!
Abençoada intervenção, a do inesquecível
Moacir Andrade! Porque, naquela hora, todos já estávamos azuis de fome!
(*) O autor, Wagner Fontenelle Pessôa, é
professor, advogado, cronista, comentarista e escritor diletante.
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