Crônica do dia - O PRESIDENTE GETÚLIO E EU

 Wagner Fontenelle Pessôa
Quando fui morar em Ouro Preto, ainda solteiro e sem conhecer quase ninguém do lugar, recebi do dono da pensão em que eu fazia as minhas refeições, a indicação de uma pessoa para cuidar da minha roupa. Era uma mulher de compleição franzina e aspecto frágil, que me pareceu, num primeiro momento, um tanto idosa para aquela tarefa de lavar e passar, sobretudo a roupa mais pesada, de cama e banho, que eu lhe entregaria semanalmente.

            Chamava-se dona Cotinha, uma senhora que morava numa das típicas edificações daquela bucólica cidade, que ficava — nas proximidades da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos — espremida entre duas outras casas e sem nenhum recuo em relação à calçada, como é próprio do estilo arquitetônico que se vê na parte histórica da outrora Vila Rica.

            Fui procurá-la e a encontrei costurando alguma coisa, como pude ver pela janela aberta diretamente para a rua, ainda numa maquininha daquelas bem antigas, tocadas a manivela. E isto, por uns instantes, associado à visão daquele casario de estilo barroco, deixou em mim a impressão de estar fazendo uma espécie de viagem pelo tempo e mergulhando em direção ao passado. Foi uma estranha e, ao mesmo tempo, deslumbrante sensação a que experimentei.

            Depois de me apresentar, dizendo o meu nome e o motivo da minha transferência para Ouro Preto, expliquei-lhe o propósito da minha visita, indagando se poderia assumir comigo o compromisso de lavar a minha roupa. Respondeu-me que sim e, como é próprio das pessoas mais idosas e que vivem meio sozinhas, como era o seu caso, encontrou motivo para esticar a nossa conversa. Algo que, dali em diante, passaria a fazer parte da nossa rotina semanal.

            Nos dias de sábado eu lhe levava a minha roupa servida e apanhava a roupa limpa que entregara aos seus cuidados na semana anterior. Diga-se, a propósito, que o seu trabalho como lavadeira e passadeira era impecável. Invariavelmente, porém, antes que eu me fosse, nós trocávamos uns bons vinte ou trinta minutos de prosa.
            Dona Cotinha me contava sobre coisas e acontecimentos da cidade (que eu ainda mal conhecia) e eu lhe fornecia a motivação para que fizesse isso. Perguntando generalidades ou indagando sobre fatos específicos da terra e de sua gente, movido pela minha curiosidade de forasteiro recém-chegado.

            Mas, alguns meses depois, devidamente instalado e com a vida profissional já organizada, eu me casei, conforme já estava nos planos da minha vida. Assim, o que era a roupa de um homem solteiro, passaria a ser a roupa de um casal. Em razão do que, algumas semanas antes, eu falei sobre isto com dona Cotinha e lhe perguntei se poderia continuar cuidando da roupa para nós.

            Ela disse que lamentava muito, que até gostaria, mas que o quintal da casa dela era pequeno e não havia espaço para estender os lençóis e demais peças de roupa de um casal, vindos numa mesma trouxa. E, generosamente, acrescentou que nos indicaria três irmãs, dedicadas ao mesmo ofício que ela, mas que possuíam um espaço maior e, por certo, nos atenderiam muito bem.

            Lamentei muito — de coração — e fiz contato com as tais irmãs, que aceitaram a incumbência. Mas continuei a levar a minha roupa para dona Cotinha, até a última semana em que estive solteiro. E quando retornei da viagem, já casado, fiz questão de ir visitá-la com a minha mulher, agora, só por uma questão de carinho e consideração. Fiz as apresentações e, embora não houvesse mais roupa a apanhar ou deixar com ela, consumi aqueles mesmos vinte ou trinta minutos com a nossa prosa de todos os sábados.

            Ela, humilde e atenciosa como sempre, só nos surpreendeu quando, em meio à conversa, fez um comentário para a minha mulher, com aquele seu jeito bem mineiro de falar:
            — Minha filha, eu gosto muito do seu marido. E olha que eu só conheci duas pessoas com um nome igual ao dele: foi ele e o presidente "Vargas", que eu também admirava muito!
            Pude então perceber que, apesar das nossas amenas conversas semanais e daqueles meses todos em que ela cuidara da minha roupa, com tanto desvelo e dedicação, aquela adorável senhorinha jamais conseguira entender o meu nome direito.
            Também, pudera! Com um nome diferente desses — pelo menos, no universo ouro-pretano de dona Cotinha — só mesmo o presidente Getúlio e eu!

            

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