Crônica na semana - A EXCEÇÃO DA REGRA

*Wagner Fontenelle Pessôa                      
Na semana passada, mencionei o fato de que, em minhas idas e vindas pelo mundo, passei um tempo vivendo e trabalhando em Ouro Preto, que foi a primeira capital do Estado de Minas Gerais e chegou a ser a cidade mais populosa da América Latina, alcançando a marca de 40 mil habitantes em 1730. É fato que a área de Villa Rica/Ouro Preto era, então, muito maior do que é agora, porque englobava os atuais municípios de Congonhas, Ouro Branco e Itabirito. Mesmo assim, naquela época, Nova York possuía a metade dessa população e São Paulo não ultrapassava a marca dos 8 mil habitantes.  
  
            Retomando, porém, a minha passagem pela Ouro Preto dos tempos contemporâneos — cuja população não vai além dos 80 mil habitantes, segundo as estimativas de 2018 — fui dar com os costados naquela bela cidade barroca como docente de uma instituição da rede federal de ensino. E tive como meu diretor um desses tipos inesquecíveis, que todo mundo encontra pelo correr da vida. Era o professor Sebastião, um homem já idoso e marcante em minha vida, sobretudo, por sua admirável sensibilidade como artista plástico e pela sua habitual elegância, no vestir e no falar.

            Antes de assumir a direção daquele estabelecimento ele fora, lá mesmo, professor de desenho técnico e artístico. Um trabalho do qual se desincumbira com extrema dedicação e competência, segundo atestavam vários dos seus ex-alunos, com quem convivi. Mas ele não era apenas isto. Como artista plástico — pintor e desenhista — era dotado de um valor excepcional. Tive a oportunidade de apreciar várias de suas obras, que embelezavam e decoravam a sua bonita casa, em estilo colonial, cada uma mais linda do que a outra!

            Nessa época eu assinava a coluna de turismo numa revista, que era editada em Belo Horizonte. E, certa vez, publicando uma matéria sobre a própria cidade de Ouro Preto, perguntei se ele não teria algum desenho disponível, que me pudesse servir de ilustração à matéria. Dias depois, presenteou-me com um esboço em bico de pena, que valorizou muito mais o meu espaço naquela edição do que o meu próprio texto. Coisa linda de se ver!

            No entanto, não sei se pela idade ou se por sua própria natureza, o professor Sebastião possuía um temperamento irritadiço. Era muito condescendente com certas coisas e nem um pouco com outras. Era intransigente, por exemplo, com a burrice alheia, que o fazia ter uma clara e imediata atitude de impaciência. E havia nele um jeito característico e engraçado de expressar essa irritação, que lhe provocavam as pessoas obtusas ou grosseiras. Fechava os olhos, batia com a mão espalmada na própria testa e dizia, esticando os erres da palavra final:
            — Esta criatura é de uma burrrrrrrrice!!!
            Sempre ri muito, pelo seu jeito de lidar com isso. Mas houve um dia em que a sua limitada tolerância com a estupidez alheia veio à tona de um jeito engraçadíssimo! Estávamos, nós dois, numa agência bancária, da qual ambos éramos clientes. E lá havia uma funcionária pela qual ele desenvolvera uma particular má vontade, sob o argumento de que, além de meio burra, ela também era mal humorada e sem educação. No que, aliás, ele não estava errado.

            Tentava realizar uma operação — salvo engano, uma transferência bancária — ainda na época em que não dispúnhamos dos recursos eletrônicos com que contamos hoje em dia. E a tal da funcionária — que, na agência, exercia a função de caixa — só criando dificuldade e complicando a coisa para o lado dele. Até que, diante da impaciência crescente do Professor Sebastião, ela lhe deu uma resposta meio atravessada, grosseira mesmo, que ele retrucou, de um modo absolutamente inesperado para mim:
            — Escute aqui, menina... Eu sempre soube que toda mulher feia, para compensar, costuma ser muito simpática. Mas estou vendo que você é a exceção que confirma a regra!
            Para uma mulher, qualquer mulher, uma observação dessas é um tiro mortal! Pois, abatida em pleno voo pela sinceridade dele, a criatura — que vinha realmente se comportando de maneira ríspida com o cliente — ficou sem saber o que dizer e sem nenhuma reposta para dar ao meu enraivecido diretor.
            Eu bem que tentei evitar, mas não resisti e, pelo inusitado da situação, acabei caindo na risada, bem na frente da tal bancária. E daí por diante ela passou a me atender com visível má vontade também. Mas, que culpa eu tivera se, de fato, ela era a exceção da regra?

(*) O autor, Wagner Fontenelle Pessôa, é professor, advogado, cronista, comentarista e escritor diletante. 


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