VIAJANTE FOLGADO
Wagner Fontenelle Pessôa (*) |
No ramo maranhense da minha família
materna havia um contraparente que foi uma das pessoas mais ranzinzas e
sisudas, das quais me lembro no meu tempo de menino. Era casado com uma prima
da minha avó e quando o conheci já era um velho, pelo menos, sob a minha ótica de
criança. Mas, qualquer que fosse a idade dele, o seu mau humor não seria, com
certeza, uma consequência do passar dos anos e da perda do encantamento pela
vida.
De
acordo com as histórias que dele contavam na família — e a própria mulher não
fazia questão de escondê-las — ele sempre fora rabugento, mesmo quando ainda
era jovem. Rabugento e grosso! Grosso, que nem “joelho de elefante” ou “beirada
de chapéu de parteira”, como se dizia no nordeste, numa época em que as
parteiras costumavam usar um chapéu de aba grossa, para viajarem no sol ou na
chuva, em seu ofício de trazerem as crianças ao mundo, mesmo nos locais mais
distantes.
Eram
do Maranhão, sendo ela uma funcionária dos Correios e ele, servidor de um órgão
público federal que, nos idos da década de 1940, tinham vindo morar no Rio de
Janeiro, por motivos e em circunstâncias que desconheço. Mas me lembro do
apartamento deles, num daqueles prédios antigos de Botafogo, onde estive
algumas vezes, acompanhando as visitas da minha mãe. Era um ambiente meio
soturno, com pouca iluminação natural, enquanto as lâmpadas só se acendiam no
espaço onde eles estivessem. Nas áreas de circulação, banheiro e cozinha, nem
pensar!
O
velho pouco conversava com as pessoas da casa ou mesmo com os visitantes.
Ignorava as crianças e guardei a sensação de que se incomodava com a presença
delas. Exceto, talvez, com a proximidade do seu então único neto, que lhe
herdara o nome — menino chatíssimo e mimado por todos da casa — que, se Deus
não socorreu, sabe-se lá onde foi parar com aquele seu frescor infantil!
Pois
com toda aquela rabugice e cara de poucos amigos, lembro-me do caso engraçado
de um conterrâneo deles que, indo ao Rio para cuidar de um assunto qualquer, considerou
a possibilidade de ser obsequiado, ciceroneado ou, talvez, até mesmo hospedado
pelo casal, com quem tivera em São Luiz, a bem dizer, um mero contato social à
distância. Apesar disso, ligou para o velho, encenando ares de intimidade e a
vontade de revê-los, quando aportasse nas terras cariocas.
O
velho atendeu o telefonema de forma seca e, percebendo as intenções do outro,
encerrou a conversa sem demonstrar qualquer interesse no encontro ou que
tivessem algum contato, quando o visitante chegasse ao Rio. Ao desligar, após a
curta conversa, só fez um comentário lacônico, como se falasse consigo mesmo:
—
Essa gente não me conhecia no Maranhão e quer vir me conhecer no Rio de
Janeiro!
Não
chega a ser incomum esse negócio de gente que, viajando para lugares turísticos
ou para cidades de grande porte, acha que é natural recorrer à hospitalidade de
familiares não muito próximos ou à dos que são apenas conhecidos. Parece que
alguns não se dão conta de que a casa alheia não é hospedaria, exceto para
aqueles com quem se tem intimidade e afeição em grau mais elevado. Fora dessas
hipóteses, a pretensão do viajante não passará de uma inconveniência, uma falta
de noção das coisas. Mas tem gente que não se toca mesmo!
Por
conta disso, na época em que trabalhei como assistente de gabinete do, então,
diretor da Escola Técnica Federal do Ceará, deu-se um episódio desses, que teve
um desfecho divertido. O diretor da instituição havia viajado a trabalho e
deixara respondendo pelos atos da direção o professor Atanásio, que era o responsável
pela área de ensino da instituição. Um profissional de reconhecida competência,
mas que, oriundo do interior do Piauí, falava de maneira simples, tinha modos
espontâneos e um jeito absolutamente informal de lidar com as pessoas.
Era
uma manhã de sábado, quando tocou o telefone e, na outra ponta da linha falava
um sujeito com um sotaque sulista carregado, dizendo ser o diretor da Escola
Técnica Federal de Santa Catarina, Frederico “não sei das quantas”. Queria
falar com o diretor em exercício e lhe disse que estava, acompanhado pela
mulher, de passagem por Fortaleza. Mas, como o seu voo para Florianópolis só
sairia à noite, gostaria de conhecer um pouco a cidade, ir a algum restaurante
típico, essas coisas. E insinuou que fosse colocado um carro à sua disposição,
para o pretendido “city tour”.
O
professor Atanásio supôs, porém, que se tratasse de um trote que lhe passava o
diretor titular, já de retorno da sua viagem, porque era seu costume fazer esse
tipo de brincadeira com os auxiliares mais próximos, E, baseado nessa suposição,
respondeu sem pestanejar:
—
Então você quer conhecer Fortaleza? Pois não, “meu bichinho”... A cidade está
aí mesmo, tem taxi, tem ônibus a toda hora e você pode ficar à vontade para
conhecer o que quiser.
Dito
isso, desligou o telefone, deixando indignado o diretor catarinense, que ligou
posteriormente para o seu colega do Ceará, lavrando um veemente protesto, pelo
que considerou ser uma desatenção e um desacato: “Sujeitinho mal educado!”.
Se
o tal Frederico entendeu as explicações e aceitou as desculpas, eu não sei. Mas
sei que a reposta do professor Atanásio ao viajante folgado foi boa demais!
(*) O autor, Wagner Fontenelle Pessôa, é
professor, advogado, cronista, comentarista e escritor diletante.
Nenhum comentário
Postar um comentário