UMA JUSTA RECLAMAÇÃO

Sinto uma especial admiração por pessoas dotadas de bom humor e que, por conta disso, são capazes de administrar as adversidades que a vida nos impõe — a todos e a cada um de nós — divertindo-se com suas próprias desditas ou encontrando motivos para rirem de si mesmas e de suas derrotas. Enfim, fazendo aquilo que muitos recomendam, mas poucos conseguem praticar: transformar o limão numa limonada. 

Faz algum tempo que conheci, casualmente, um senhor tão simpático quanto inteligente, que deve andar aí entre os 85 e os 90 anos de idade, mas mantém completa lucidez e uma memória prodigiosa. Sobretudo em relação aos temas de sua particular preferência. Um dos quais é a arte do cinema e, de modo mais específico, os grandes clássicos da cinematografia. 

É um verdadeiro especialista em tudo quanto diz respeito às grandes produções de Hollywood, mas também ao cinema europeu e aos filmes considerados “cult movies” ou filmes de culto (como se diz em Português), que seriam aqueles conhecidos por sua base de fãs, que é devota e apaixonada por eles. 

Pois essa grande figura humana conhece tudo sobre os clássicos do cinema: títulos, ano de produção das obras, atores mais importantes, direção, roteiro, trilha sonora e quanto mais se queira saber sobre cada um deles. Tem um estúdio em casa onde mantém o seu acervo, com cerca de cinco mil ou mais títulos, onde tive o prazer de ser recebido por ele, algumas vezes. 

Por conta do meu interesse naquilo em que ele é um expert, desenvolveu-se entre nós uma convivência muito afetuosa e, sobretudo, muito divertida, porque ele tem uma veia humorística mais do que apurada. Tem um excelente repertório de anedotas e é um craque na arte de fazer trocadilhos e dizer coisas de improviso. Sempre que possível e quando nos encontramos numa cafeteria que ambos gostamos de frequentar, tomamos um café juntos, enquanto curtimos um papo desses, que nunca deveria acabar. 

E foi numa dessas oportunidades, enquanto dividíamos uma mesa, degustávamos o café e ríamos das bobagens da nossa conversa, que adentrou o ambiente e passou por nós, indo e voltando, uma dessas mulheres “enjoadas de tão lindas”, como costumam dizer os gaúchos. Era tão exuberante, dos pés à cabeça, que bem poderia ser enquadrada na categoria de “atentado contra a estabilidade do matrimônio e à incolumidade da paz social”. 

Ainda bem que eu estava usando óculos escuros, que me permitiram olhá-la com discrição e não passar às mesas vizinhas o recibo de “babaquara”, que mais deplorável fica para um homem, a partir de certa faixa etária. Olhei sim, mas com a devida cautela, para que ninguém percebesse aquele olhar de “Ai, se eu pudesse e Papai do Céu me desse!”. 

Depois disso, tornei a prestar atenção ao meu parceiro de mesa, aquele quase nonagenário tão simpático e bem humorado, imaginando que, talvez, ele nem houvesse prestado muita atenção àquela “entidade” que desfilara entre as mesas, iluminando o ambiente da cafeteria. Mas não foi bem assim. 

Olhando para cima, como se estivesse focando além do firmamento, ele disse, em tom de oração: 

— Senhor... Se me tiras a força, por que não me tiras a vontade também? 

Em seguida, voltou os olhos para mim e disparamos os dois a rir. De fato, ele estava apenas gracejando, bem humorado como costuma ser. Mas não pude deixar de concordar que era uma justa reclamação... 

Nenhum comentário