CHEGAVA A SER COMOVENTE
Na época em que a minha família morou
na cidade de Cachoeiro de Itapemirim, no glorioso Estado do Espírito Santo,
onde tive a boa fortuna de nascer, durante alguns anos o meu pai foi
proprietário de uma pequena empresa de construção civil e terraplenagem. Em razão
disto, além dos operadores de máquinas, motoristas, mecânicos e auxiliares, ele
teve, a seu serviço, um ajudante de tratorista que se chamava Zé Silva.
Era um pretinho desses de pequena
estatura, esbelto e com uns olhos negros que nem jabuticaba, apressado no
cumprimento das ordens, ainda que um tanto atrapalhado, tal a sua vontade de
dar cabo das tarefas que lhe eram determinadas.
Embora
meus irmãos e eu fôssemos apenas crianças naquela época, vendo à distância e
depois de tanto tempo, posso avaliar que ele não deveria ter mais do que uns vinte
ou vinte e poucos anos. Mas o fato é que, por suas tiradas, perguntas,
respostas e reações, o Zé Silva acabou se transformando num tipo meio folclórico,
nas lembranças de todos nós.
O
meu pai sempre foi muito cauteloso, com quem trabalhava para ele, no sentido de
não deixar que o empregado se descontrolasse com as próprias finanças. Talvez,
porque soubesse que um trabalhador atormentado por dívidas e compromissos, não
consegue se concentrar no trabalho e nem ser totalmente produtivo. Assim, mantinha
um rigoroso controle sobre os "vales" e "adiantamentos"
concedidos, para que o empregando não chegasse ao final do mês sem algum saldo
de salário que, lhe garantisse o pagamento das contas no armazém, açougue ou
padaria.
Deu-se,
porém, que num sábado, dia em que fazia o pagamento aos empregados,
apresentou-se muito arrumado, para o recebimento da quinzena, o Zé Silva, que,
sem nenhuma pressa aparente, foi deixando que os outros fossem pagos primeiro.
Ficou para o final da fila e, ao entrar no escritório, depois de receber e
conferir o conteúdo do seu envelope, um pouco hesitante, perguntou ao meu pai:
— Seu João, será que o senhor podia me adiantar um
dinheiro do próximo pagamento?
Preocupado que ele pudesse estar metendo os pés pelas
mãos, o patrão quis saber:
— E para quê você precisa de mais dinheiro, Zé Silva? Não
está acabando de receber o seu pagamento?
Um pouco envergonhado, o pretinho baixou aqueles olhos de
jabuticaba até o chão e explicou:
— É que eu namoro uma moça aí e como "aconteceram
umas coisas", eu estou precisando "limpá o meu caráte".
Como para um bom entendedor meia palavra basta, o meu pai
só fez perguntar:
— E de quanto você precisa para "limpar
o seu caráter", Zé?
— De uns cem cruzeiros, seu João.
No
dinheiro de hoje, eu não saberia mais fazer a conversão, mas era bem pouco,
pelo que me lembro, quando ouvi esta história pela primeira vez. Algo como uns
trezentos reais, se tanto, na moeda de agora. E, claro, o pedido do Zé Silva
foi atendido.
Tantos
anos depois, quando me lembro do episódio, duas coisas me ocorrem. A primeira é
que há muito caráter sujo por aí que não há dinheiro do mundo que limpe. E a
segunda, sobre aquele ajudante de tratorista, é que o caráter dele era tão
fácil de se limpar, que até chegava a ser comovente, pela humildade de sua
dimensão.
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