Crônica da semana/ A BALA, O SENHOR NÃO FECHA!
Wagner Fontenelle Pessôa
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Na
Fortaleza do século passado, aí pelos anos 50, havia um jovem médico, que era
tão boêmio quanto despreocupado com os seus compromissos financeiros. Naquela
época, ao contrário do que temos agora, os profissionais da medicina não
faturavam tanto e nem com tanta facilidade, como os de hoje em dia, que podem
associar plantões, consultório e dois ou três empregos, para garantir uma boa renda
mensal.
Os médicos de outrora não se
organizavam em cooperativas, não existiam os planos de saúde e a maioria deles
vivia, mesmo, era da sua clínica particular ou do seu trabalho em algum
hospital. E, às vezes, como acontece com muitos profissionais liberais, isto fazia
com que a contabilidade do facultativo, ao final do mês, estivesse "no
vermelho". Pois, assim, também acontecia com o "doutor Bié" —
apelido carinhoso pelo qual era conhecido — que apreciava, muito mais, segurar
um copo do que um estetoscópio.
Como a maioria dos boêmios, o médico
adorava reunir amigos ou reunir-se com eles, para uma noitada de boa comida e
grandes libações. E, de vez em quando, gostava de patrocinar um jantar ou
recepção para alguns convidados, porque era um sujeito festeiro, embora não
dispusesse de reservas pecuniárias suficientes para tanto. E por ser assim, era
uma pessoa muito bem relacionada, um desses tipos cativantes que todo mundo
conhece e aprecia.
Em
contrapartida, sempre tinha várias contas "penduradas" pelos bares e
restaurantes da cidade, porque nunca as pagava nos prazos prometidos. E, apesar
disto, aqui e ali, não se sabe como, ainda conseguia ser atendido e pendurar
novas contas, por cima das anteriores.
Uma das fraquezas do "doutor
Bié", que também ajudava a endividá-lo, era a sua irresistível atração
pelas tripulações das companhias aéreas que, naquela época, pousavam e
pernoitavam na capital do Ceará. Não eram muitos esses voos, num tempo em que
as viagens aéreas traduziam uma espécie de "status" social e
econômico. Nem todo mundo podia viajar de avião, mas, em compensação, as
empresas de aviação comercial caprichavam no serviço de bordo e na composição
das equipes.
O aspecto físico fazia parte do
processo de seleção de aeronautas e aeroviários. Não havia nenhum imbecil
protestando contra a discriminação dos mais feios e nem querendo ser indenizado
por danos morais, em razão disto. Sendo assim, as aeromoças, pela sua beleza
física, porte e elegância, povoavam os sonhos e as fantasias de todos quantos
tinham a possibilidade de fazer um voo de vez em quando.
Provavelmente, era isto o que fazia
o "doutor Bié" sentir aquela atração irresistível pelas equipes de
voo que realizavam conexões e pernoites na Fortaleza daqueles tempos. E como,
aqui e ali, deviam sobrar olhares de alguma aeromoça bonita ou algo mais para
ele, o médico se desdobrava para demonstrar sua simpatia e hospitalidade aos
grupos de aeronautas que aportavam na cidade. Sempre que possível, costumava
recepcioná-los, não se importando, para isto, com o quanto iria gastar ou de
que jeito iria pagar depois.
Foi assim que, certa vez, estando
avisado de que uma equipe da PANAIR, com quem ele se dava, voando dos Estados
Unidos para o Brasil, faria um pernoite em Fortaleza, correu a um restaurante,
que ficava na bela Praia de Iracema — que, depois, o avanço do mar fez
desaparecer — para encomendar ao proprietário, um jantar caprichado, com que
pretendia receber os pilotos, comissários e, principalmente, as aeromoças.
Chegou e foi logo especificando:
— Quero tudo do bom e do melhor,
para oito ou dez pessoas! Patinhas de caranguejo e ostras para a entrada. No
jantar, uma peixada "no capricho" e lagostas, dessas bem graúdas.
Sobremesa, com doces típicos e frutas da terra. E vinho... Quero um de boa
qualidade, além de água de coco e refrigerantes, para quem preferir! Estarei
aqui com os meus convidados, entre 9 e 10 horas da noite.
O dono do restaurante, entre
impaciente e desalentado, disse para o médico:
— Não vai dar, doutor... Desta vez
não vai ser possível!
O "doutor Bié" não
entendeu e nem aceitou a recusa:
— Como não vai dar? Tem que dar! Se
está faltando alguma coisa, mande comprar logo, ponha o seu pessoal a
trabalhar, porque esses convidados são amigos especiais para mim. E não posso
fazer feio diante deles.
O proprietário da casa voltou à
negativa, de uma forma mais incisiva:
— Mas não vai dar mesmo, doutor...
Hoje não vai dar, de jeito nenhum!
Indignado e "sem noção", o
médico deu um ultimato ao dono do lugar:
— Tem que dar, fulano! Ou você me
prepara esse jantar ou eu fecho esta sua espelunca a bala!
Ao que o outro finalizou a conversa,
dizendo:
— "A bala", o senhor não
fecha! Mas vai acabar fechando é "a vale"!
Efetivamente, o boêmio e
irresponsável "doutor Bié" não pagava suas contas e tinha vales
"pendurados" naquele restaurante, desde o começo do ano. E já era
quase dezembro...
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