Crônica da semana/ AINDA HEI DE SER SALVO

Wagner Fontenelle Pessôa                                   
No princípio, isto só acontecia nos canais da tevê aberta. Mas depois e aos poucos, foi invadindo a tevê por assinatura também. Já nos dias atuais, para onde quer que o cidadão se vire, vai se deparar com alguém — padres, bispos, pastores, missionários e pregadores — tentando convertê-lo e salvar a sua alma.
            Nas manhãs de sábados ou domingos e nas madrugadas dos demais dias da semana, então, é que a coisa fica realmente complicada. Você deixa a televisão funcionando, dorme com a Sharon Stone montada no Michael Douglas — porque, mais tarde da noite, também só passa filme velho — e acorda com um pregador, aos berros, mandando que você se arrependa e sendo chamado de fariseu! Sinto ímpetos de gritar para a tevê:
            — Dá um tempo aí, irmão, que eu nem assisti toda a “transa” deles, porque dormi primeiro!
            Os mais religiosos têm à sua disposição, deste modo, uma série de emissoras de televisão, para todos os gostos, preferências e diversidades de fé. Porque, “em verdade vos digo”, que a quantidade de programas religiosos, cultos, sermões, missas e pregações na telinha, está beirando ou já ultrapassou os limites do suportável.            Nada contra as religiões de forma geral, ou contra qualquer uma delas em particular. Que fique bem entendido! Falo apenas como telespectador que, em certos dias e determinados horários, vejo as minhas opções de programação sensivelmente
diminuídas, porque nove entre dez canais da TV estão tentando conduzir-me aos caminhos da salvação.
            Como já disse, tem para todas as preferências. Há, até mesmo, alguns canais que lutam por salvar a minha pobre e desorientada alma durante as 24 horas do dia. E ainda havia um deles que, acreditando serem essas 24 horas insuficientes para tão monumental tarefa, acabou criando uma tal de “25ª Hora”, um programa que nem sei se ainda existe. Os astrônomos que se cuidem!
            Para ser justo, porém, devo dizer que alguns desses programas e sermões, testemunhos e doutrinações têm permitido que eu aprenda coisas úteis e importantes, para esta vida e — quem sabe? — para o que der e vier depois dela. Por exemplo, está lá nas Escrituras (é o que garantem e explicam minuciosamente os “ministros” de diferentes igrejas) que pagar o dízimo é mais que uma obrigação e uma necessidade. É ordem direta de Deus! O que significa que, nem morrendo, você irá se livrar de pagar alguns impostos.
            Outra coisa extremamente simples é transferir dinheiro para a sua igreja ou congregação predileta. Segundo eles explicam e tornam a explicar, basta chegar ao banco tal, dirigir-se diretamente ao caixa (nesse banco, pelo visto, nem tem fila) e depois remeter o recibo à contabilidade da igreja. Ainda bem que Deus está vendo tudo. Porque, pelas instruções dadas, você não fica com nenhuma prova de que cumpriu a sua obrigação como “dizimista”.
            Numa manhã dessas (e nem era domingo), havia umas cinco ou seis emissoras transmitindo programas religiosos, de diferentes convicções. Numa, eram notícias da Arquidiocese; noutra, era uma entrevista com a participação do Bispo Macedo; numa terceira, o padre anunciava a venda de um crucifixo milagroso por pouco mais de cem reais e assim por diante. O que me chamou realmente a atenção foi que, em dois desses canais (de orientação católica e evangélica, respectivamente) os oradores, um padre (com a maior “cara de pau”) e um pastor (que tem cara de alemão, mas nem por isto se trata de um "pastor alemão"), exploravam o mesmo tema: a perseguição religiosa. E tome Paulo de Tarso!
            Achei interessante que ambos colocavam os adeptos de sua igreja na condição de perseguidos e os membros da outra, na situação de perseguidores. Num duelo verbal para sensibilizar os fiéis, faziam locuções de conteúdo e apelo tão semelhantes (ainda que contrários), que só a sabedoria divina conseguiria desempatar a demanda. Coisa de “dar um nó”, até na cabeça do próprio Rei Salomão.
            Gostaria muitíssimo que a mídia e, sobretudo, a TV por assinatura (que é paga), estivessem menos a serviço da ânsia de salvar a alma alheia, da qual alguns parecem estar tomados. Até porque, com tantos e tão variados caminhos para se chegar a Deus — que se estendem até a minha casa, sem que, para isto, eu tenha solicitado ou dado a minha permissão — eu estou bem tranquilo. Porque ainda hei de ser salvo por essa gente toda... Mesmo que eu não queira!


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