O QUE EU QUERO É INDEPENDÊNCIA!

Wagner Fontenelle Pessôa
Todos nós estamos sujeitos ao risco de dizer algo que os nossos interlocutores, as pessoas com quem estamos conversando, entenderão de uma forma completamente diferente daquilo que fora a nossa intenção dizer.

            Na minha família — que eu me lembre, assim de pronto — há um divertido episódio desses. Depois de passarmos juntos uma noite de réveillon, durante a qual comeu-se muito e bebeu-se com certo exagero, um dos meus tios, ao voltar para casa bastante alcoolizado, o que era fora de seus hábitos, recolheu-se com a mulher para dormir. Mas o casal foi acordado, não muito tempo depois, por uma altercação, em frente de sua casa, envolvendo um grupo de beberrões que, por certo, também deveriam estar voltando de alguma comemoração pela chegada do novo ano.

            Era um bate-boca exagerado, aos gritos, com empurrões e palavrões distribuídos democraticamente: todos diziam e todos ouviam os desaforos, pelo que foi dado a perceber a quem estava apenas escutando o alarido. E o meu tio, acordando com aquela alaúza, mas ainda sob o efeito da carraspana e sem compreender as razões e motivações daquilo, emergiu do sono e começou — ainda sentado na cama — a tomar satisfações com os baderneiros que se desacatavam lá fora. Uma atitude totalmente improdutiva, diante da qual a mulher, pretendendo acalmar o corajoso e voltar a dormir, disse ao marido, com alguma irritação:

            — Sossega e dorme que isso é “briga de homem”, na rua!

            Ao que ele, sem entender a frase da minha tia e sentindo-se desprestigiado pelo que ela dissera, reagiu, com a valentia típica dos bêbados:

            — E eu, por acaso também não sou homem, minha mulher?!
Ato contínuo voltou a roncar o ronco dos alcoolizados. Mas, curada a ressaca do dia 1º de janeiro, o caso tornou-se uma diversão para todos nós, tios, cunhados e sobrinhos do protagonista principal dessa pantomima. Inclusive para ele mesmo, que sempre foi uma das pessoas mais tranqüilas e bonachonas a fazer parte dessa família.

            Lembro-me deste caso específico, mas acrescento que temos, em nosso currículo familiar, inúmeros outros que também se prestariam a exemplificar essa questão dos mal-entendidos. A verdade, porém, é que esse tipo de situação não é uma exclusividade dos Fontenelle. Todas as famílias já viveram e vivem situações assim, se é para falar, apenas, daquilo que pode ser considerado como motivação para o riso e a galhofa. Porque as incompreensões que levam a discórdias e rupturas, não devem ser lembradas; devem é ser esquecidas.

            Ressalvo, porém, que um mal-entendido, às vezes, pode trazer consequências um tanto mais graves, sobretudo em tempos de exceção e ainda que pareça divertido para quem observa, de fora e à distância.

            Foi o que contam ter ocorrido ao tempo da ditadura de 1964, quando palavras e manifestações de insatisfação com o país — ou com o que acontecesse por aqui — pareciam ser uma ofensa direta e pessoal aos milicos, uma demonstração de crítica ao regime e um atentado contra o sentimento de apreço à pátria, que a todos convinha exteriorizar. Nem que fosse por mero espírito de sobrevivência.

            Já era quase meia noite quando aquele tipo, visivelmente embriagado, abriu os braços e gritou, enquanto se encontrava próximo a um ponto de ônibus:

            — CHEGA DE GLÓRIA! O QUE EU QUERO É INDEPENDÊNCIA!!!

            Para seu azar, bem nessa hora ia passando por ali, numa rua já com pouco movimento, um carro do Departamento de Ordem Política e Social. E os agentes do temível DOPS — que viam indícios de subversão até num espirro mal dado — bem tiveram tempo de ouvir o grito do homem. O que, para eles, teria sido uma manifestação panfletária de caráter subversivo.

            Pararam o carro bruscamente e já saíram empunhando as armas, naquele estilo de encenação que apreciavam tanto. Cercaram o bêbado, deram nele um “sapeca Iaiá” e o meteram no camburão, levando-o para a delegacia mais próxima, com o propósito de submetê-lo a um “interrogatório científico”, daqueles que a que estavam acostumados.

            O pé-de-cana só levando uns safanões e tratado como agitador, nem mesmo entendia o que estava acontecendo, até que alguém teve a brilhante idéia de lhe perguntar o significado daquilo que gritava na rua. Que conversa era essa de “chega de glória, eu quero é independência”? O que você pretende dizer com isso?

            Foi quando o sujeito, que havia bebido todas num barzinho ali por perto, respondeu enrolando a língua, como qualquer cachaceiro costuma enrolar:


            — É que eu moro no bairro Independência... Tem mais de duas horas que estou esperando no ponto e só passa ônibus para a Glória... Como é que eu vou conseguir chegar em casa?!

            E repetiu a frase, sem perceber que fora ela a causa de tudo:

            — Chega de Glória! O que eu quero é Independência!

            E nada mais disse, nem lhe foi perguntado. O delegado determinou que liberassem o detido e até mandou que uma viatura o deixasse no ponto de ônibus de onde fora levado. Com a recomendação de que não ficasse gritando no meio da rua, para não perturbar o sossego público.

           


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