Crônica da semana - UM DESAFORO A MAIS


Wagner Fontenelle Pessôa                                       
O meu avô por parte de mãe era um desses tipos irritadiços e dado a extremos de humor. Às vezes, dizia coisas engraçadíssimas; noutras, se mostrava impaciente com algo que acontecesse em sua presença ou que alguém lhe contasse. Por mais desimportante que fosse, porque dependia menos da seriedade ou gravidade do assunto do que do seu estado de espírito, na ocasião.
            Ocasionalmente, tomava-se de implicância por alguém ou por alguma coisa. E, embora sendo o motivo insignificante, rompia relações com um amigo ou parente e chegava à casa dizendo impropérios contra o alvo de sua indignação:
            — Nunca mais eu dirijo a palavra àquele cretino!
            Porém, isso não representava, pela obrigação da palavra dada, a garantia de que essas relações estariam, de fato, rompidas para sempre. Porque essa é a natureza dos Fontenelle: uma raiva explosiva, mas uma memória curta para o ressentimento. Assim, havendo alguma oportunidade de reconciliação com o “desafeto temporário” — ainda mais, se fosse alguém de sua própria família — num dia qualquer e de forma inesperada, ele entraria de porta adentro dizendo à mulher, que era a minha avó:
            — Eunice, providencie um cafezinho aqui para o meu tio querido!
            Falava como se nenhum estremecimento houvesse acontecido antes daquela data. E assim retomava o seu relacionamento, cheio de mesuras e volteios com o convidado, até que, numa próxima altercação, o “meu (dele) tio querido”, seria rebaixado outra vez, no seu modo de definir as coisas, à categoria de “aquele cretino”.
            Naquela época, na área central da cidade de Fortaleza, a maioria das casas era edificada na face da rua (como se diz) e, muito frequentemente, de forma contígua. Isto é, sem qualquer espaço entre elas, sendo suas paredes laterais encostadas às paredes das casas imediatamente vizinhas. As ruas Major Facundo, Rio Branco, Senador Pompeu e General Sampaio, além de outras, eram formadas, basicamente, por esse tipo de casario.
            Se isso facilitava a bisbilhotice provinciana daqueles tempos, por outro lado trazia o grave inconveniente de que os ruídos e sons produzidos numa casa poderiam ser ouvidos por quem estivesse nas casas laterais. E, por algum tempo, meus avós tiveram ao seu lado, a família do Gaioso. Gente tosca e ruidosa, que parecia não ter a mínima preocupação com a regra comezinha de não perturbar o sossego alheio. Além do que, o chefe do clã era dotado de um mau hálito que se percebia à distância!
            Pior ainda é que o Gaioso, madrugador, acordava aí pelas 4 horas da manhã, dando um sonoro bocejo, que era quase um urro. Sua pobre mulher, a não ser que estivesse desmaiada pela halitose do marido, devia acordar assustadíssima! E o meu avô era despertado do seu melhor sono — aquele que temos quando começa a amanhecer — num estado de absoluta irritação. Por isso, tão alto e sonoro quanto o vizinho bocejava do lado de lá da parede, ele gritava do lado de cá:
            — Este cavalo!!!!!
            É claro que o vizinho sem educação ouvia o desacato também. Mas isso, em lugar de fazê-lo ser mais discreto no seu despertar, fez foi com que aquilo se tornasse uma pinimba e parte da rotina de ambos: o Gaioso perturbando o sono de todos às 4 horas da manhã e o meu avô a mimoseá-lo com a exclamação de sempre: “Este cavalo!!!!!”.
            A minha avó tentava acalmar o marido, para evitar que aquilo continuasse a se reproduzir a cada novo amanhecer. Mas era o mesmo que nada: o Gaioso bocejava aos berros, de um lado, enquanto o meu avô o desacatava do outro. Interessante, porém é que, apesar disso, eles se cumprimentavam normalmente, quando por acaso se encontravam, entrando ou saindo de casa. Era como se nada daquilo existisse e nenhum deles percebesse a troca de insultos a cada novo amanhecer.
            Até que certa vez, a propósito de não sei lá o quê, o Gaioso ligou para falar com o vizinho e coincidiu que o telefone na casa dos meus avós estava precisando de uma higienização. Coisa que era necessário fazer, periodicamente, nos aparelhos telefônicos mais antigos, por conta daquele bocal fechado, que acabava ficando com um certo mau cheiro mesmo. Meu avô conversou com o vizinho e, ao desligar, disse, alto o bastante para que o outro ouvisse, além da parede:
            — Mas não é possível, Eunice! A boca do Gaioso fede até pelo telefone!
            Nesse dia o meu avô foi à forra: descontou a raiva pelo sono perturbado, dizendo ao vizinho um desaforo a mais...


            

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