ACHO QUE ESCAPEI POR POUCO
Em
muitas décadas de exercício do magistério, sempre considerei importante poder
identificar os meus alunos e chamá-los pelo nome. É algo que tem a ver com a
autoestima, porque as pessoas se sentem valorizadas pelo fato de serem
reconhecidas e individualizadas por quem convive com elas. Embora existam
professores que passam todo o semestre, do primeiro ao último dia de aula, sem
guardarem direito o nome da maioria daqueles que estão em suas turmas.
Para
isto, desenvolvi uma forma própria de memorização, que sempre me ajudou a
guardar seus nomes e fisionomias, desde que começam as aulas, quando leio a
lista de presenças da nova classe pela primeira vez. Na medida em que vou
chamando, olho para quem responde e, faço um comentário sobre o seu nome,
sobrenome ou o número que lhe foi atribuído na lista. E isto me permite fixar a
fisionomia deles ou delas, num tempo relativamente curto.
Alguns se surpreendem ao percebem
que já os reconheço, com um mês ou pouco mais do que isto, depois de iniciado o
período letivo. E, embora, isso decorra de uma simples técnica de memorização e
do seu exercício, faz uma importante diferença no relacionamento entre o
professor e a turma. Mas, às vezes, por razões diversas, o melhor é não
aplica-la.
Há alguns anos, quando ministrava a
primeira aula numa turma do curso de Direito — e, fazendo uso dos meus
habituais recursos para memorizar os nomes dos novos alunos — eu ia chamando
por eles e comentando sobre o sobrenome de um, ou brincando com o nome do
outro. Ainda mais, quando se tratava desses nomes incomuns ou com grafias
complicadas, repletas de h, w, x, y ou z.
Chamei um tal de “Julthamaytar” e
lhe perguntei:
— Meu filho, de onde foi que o seu
pai tirou esse nome? Você nunca pensou em processá-lo por isso, não?
O rapaz, simpático e bem humorado,
começou a rir e toda a turma junto com ele. Por causa disso, desde aquele
primeiro dia, guardei e ainda guardo a lembrança dele e desse acinte contra o
seu registro civil. Continuei a chamada do mesmo jeito, mas, logo em seguida, uma
aluna (mais para “bem passada” do que “ao ponto”) levantou-se da carteira, veio
até a minha mesa e me disse, bem séria e em voz baixa:
— Professor, eu queria lhe pedir que
não brincasse com o meu nome.
Achei aquilo meio sem sentido, mas
lhe disse que eu não faria nenhuma brincadeira, quando chegasse a vez dela. Só
que, para isto, eu precisaria saber qual era o seu nome. Foi quando a referida
se apresentou:
— Cunegundes! (na verdade, o nome
dela era Maria Cunegundes).
Achei que o momento não seria adequado
para explicar-lhe que Cunegundes (ou Santa Cunegundes) fora uma rainha, casada
com o rei Henrique, da Baviera. E que, apesar do seu sugestivo nome, tinha com
o marido um compromisso de “continência perfeita” (isto é, na hora de dormir,
eles só rezavam e cada qual virava para o seu lado). Sendo certo, porém, que a
aluna não estaria nem um pouco preocupada com a castidade da rainha e apenas
com as brincadeiras que o seu nome poderia sugerir, eu lhe disse que não se
preocupasse e ela se foi.
Mas isso me fez voltar algumas
décadas no tempo, quando decidi encerrar a minha descendência com os dois
filhos que já pusera no mundo e procurei um especialista para fazer uma
vasectomia. Recebi a Indicação de um profissional experiente nisso, o doutor
Fraga Filho, que talvez pudesse chamar-se doutor “Flagra” Filho, porque depois
do que ele fazia, mais nenhum menino passava escondido por aquele caminho.
“É uma intervenção simples, com
anestesia local”, esclareceu-me o médico, que agendou a data comigo e me
entregou a requisição para, tão somente, um exame de sangue, num formulário
timbrado, onde se lia: “Dr. C. Fraga Filho – Urologia e Clínica Médica”. Eu me
fui e voltei no dia apalavrado, com o resultado do exame, para resolver a
questão.
Mas, devidamente instalado e
anestesiado para o início daquela “intervenção”, sem nada de melhor para
conversar com o médico, eu me atrevi a perguntar:
— Doutor Fraga Filho, esse C que
está no seu timbre corresponde a que nome?
Ele me fuzilou com um olhar bem
sério e respondeu, quase como se fosse um insulto:
— Cunegundes...
Não acrescentei nenhum comentário e
só depois foi que compreendi o tamanho da bobagem que eu fizera. O sujeito
odiava o próprio nome, como me disse um amigo que fora seu aluno no curso de
Medicina. Na faculdade, quem o chamasse de doutor ou professor Cunegundes
levava um esculacho monumental e era agraciado com a sua má vontade, até o
derradeiro dia de aula!
E ali estava eu, fazendo-lhe aquela
pergunta desnecessária e idiota, enquanto o Dr. C. Fraga Filho tinha as “minhas
coisas” em uma das mãos e um bisturi na outra, Sinceramente, eu acho que
escapei por pouco...
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